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20 Abr 2021
Correspondência #16
Foto: The Siberian Times
Foto: The Siberian Times

Ao longo do processo de construção da 34ª Bienal de São Paulo, sua equipe curatorial, artistas participantes e autores, através de cartas como esta, refletem direta e indiretamente sobre o desenvolvimento da exposição. Esta décima sexta correspondência foi escrita pelo curador convidado Francesco Stocchi.



Para escolher a utopia, como fez o poeta Thiago de Mello, é preciso acreditar em um futuro melhor e otimista. A crise da Covid-19 pela qual estamos passando impôs uma paralisação forçada e arbitrária à concepção de um futuro, que agora é ainda mais incerto, turvo e em constante mutação. Mas se não podemos olhar para frente sem ficarmos atordoados, talvez a atual pandemia seja um convite para olharmos mais atentamente para o presente. Pensar no presente, pensar neste presente dramático atual, é um instinto básico, e não um dever. Ter sucesso, no entanto, é uma tarefa tão difícil que parece quase impossível. O presente é o resultado da nossa história, um conjunto de trajetórias pessoais, nacionais e continentais que não podem ser resumidas de maneira fácil. Depois da ascensão e do colapso do marxismo a última filosofia totalizante a ter experimentado sucesso e difusão mundiais, envolvendo o intelectual e o trabalhador, governante e oprimido, privilegiado e vítima nenhuma teoria ou teórico se mostrou capaz de fornecer um sistema claro de ideias que poderia descrever de maneira convincente o absoluto eternamente móvel e circunstancial que é o presente.

O presente, o aqui e agora, foi aceito como estado de emergência, excepcional, urgente; na verdade, a vida não pode e não deve ser adiada para amanhã. Kierkegaard falou de um momento, ou um agora, e em todas as religiões, a "conversão" de toda uma vida sempre foi abraçada como algo evidente. Mas as concepções morais e religiosas são sempre tão peremptórias quanto oscilantes e paradoxais: a vida mais verdadeira é agora ou no futuro, nesta vida ou na outra? É possível, e até utópico em si mesmo, pensar neste tempo restrito como um convite a se interessar pelo momento presente, a defini-lo, a buscar suas falhas, suas existências ocultas. Revisitar o presente para melhor habitá-lo implica necessariamente olhar para trás; por enquanto, nosso horizonte parece parado. Aqui, neste momento, enquanto escrevo e você lê, somos produtos de uma história passada. Qual história? Existe apenas uma? Há, é claro, a história imposta por uma certa tradição em busca de dominação: uma história oficial, ensinada para nós desde a escola e ancorada nos confins mais profundos de nossa consciência como única e verdadeira, sem abertura para qualquer discussão possível. No entanto, não pode haver apenas uma história, pois há tantas histórias quanto há pessoas vivas. Carlo Ginzburg, um pioneiro da micro-história, fez da missão e da luta de sua vida trazer à tona as falhas e as lacunas da história oficial, as anedotas que não foram mencionadas nesta máquina do tempo e da memória.

Oito rostos humanos espalhados entre padrões geométricos, cada um apresentando fendas como olhos que espreitam, de forma não totalmente bondosa, desde as superfícies frontal e posterior. Rebatizado de “Ídolo Shigir”, esse objeto foi encontrado em uma jazida de turfa em 1890 e, por muito tempo, a datação dessa escultura de madeira esteve sob investigação. Testes recentes usando tecnologia avançada renderam uma data de origem notavelmente precoce, cerca de 11.600 anos atrás, uma época em que a Eurásia ainda estava na transição da última Idade do Gelo. A escultura tem mais que o dobro da idade das pirâmides egípcias e do Stonehenge, assim como sua idade ultrapassa em muitos milênios a primeira obra de arte ritual conhecida. Esta datação surpreendentemente precoce do ídolo faz dele a escultura de madeira monumental mais antiga do mundo. Não possui nenhum paralelo direto, o que dificulta a interpretação e a contextualização do achado. Thomas Terberger, arqueólogo e chefe de pesquisa do Departamento de Patrimônio Cultural da Baixa Saxônia, na Alemanha, observou: “Desde a era vitoriana, a ciência ocidental tem sido uma história de conhecimento europeu superior e do ‘outro’ cognitiva e comportamentalmente inferior. Os caçadores-coletores são considerados inferiores às primeiras comunidades agrárias do Levante, emergentes naquela época. Ao mesmo tempo, as evidências arqueológicas dos Urais e da Sibéria foram subestimadas e negligenciadas”. Essa escultura e os estudos recentes relativos à sua datação desafiam a noção etnocêntrica de que quase tudo, incluindo a expressão simbólica e as percepções filosóficas do mundo, veio para a Europa 8 mil anos atrás por meio das comunidades agrícolas sedentárias do Crescente Fértil.

O presente é tão presente e móvel que qualquer esforço para defini-lo pode apenas obter resultados limitados e parciais. Quando nossas certezas são sabotadas, as utopias tanto as do presente quanto as do futuro acabam se tornando ferramentas necessárias.