Ao longo do processo de construção da 34ª Bienal de São Paulo, sua equipe curatorial, artistas participantes e autores, através de cartas como esta, refletem direta e indiretamente sobre o desenvolvimento da exposição. Esta décima correspondência foi escrita por Carla Zaccagnini.
“O nosso passado não é fatal, pois nós o refazemos todos os dias”, escreveu Mario Pedrosa em texto sobre Brasília, em 1959.¹ O passado só existe reescrito a partir de cada presente. Cada vez que voltamos a um jornal antigo para ler um artigo histórico podemos encontrar novas pistas, nos anúncios laterais; nos erros tipográficos ou falhas de impressão; nas manchas dadas pelos usos e leituras que marcaram a vida do jornal desde que saiu da prensa até chegar às nossas mãos. Muda aquilo que queremos e conseguimos acessar do passado, e assim vão se somando as camadas que lhe dão forma e gosto. Ao conteúdo do texto se soma o personagem do funcionário disléxico, o slogan que quer vender carros ou cigarros, o suor das mãos, uma marca de copo.
Mas não é só isso. Cada vez que, como agora, precisamos entender onde estamos, buscamos em fragmentos do passado causas e sinais que encadeamos em narrativas com o desfecho presente. E quando o presente muda, o passado acompanha. Se a chuva refresca a seca, as nuvens escuras que vimos no céu de ontem eram já a evidência da tempestade e do alívio. Se a chuva não cai, as mesmas nuvens eram de mau agouro e já anunciavam as vacas magras.
Ao falar da cidade futurística, ainda em construção, Pedrosa suspende a solidez do passado. Um ano depois, entretanto, na inauguração de Brasília, o passado pesa. O encarregado do cerimonial manda transportar um sino de ferro desde a cidade montanhosa de Ouro Preto até a Praça dos Três Poderes. No momento em que se fundava o que prometia ser uma nova era, pareceu necessário ecoar o som desse símbolo católico e colonial. E então, no dia 21 de abril de 1960, o sino da Capela do Padre Faria – como é conhecida a capela de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Brancos, inicialmente dedicada à Nossa Senhora do Parto – dobrou pelo nascimento de Brasília.
Qual era o passado que se tentava evocar com essa presença? Um outro 21 de abril, o de 1792², em que esse mesmo som também se ouviu deslocado – não num lugar, mas num momento em que não deveria soar. Os sinos de toda a colônia tinham sido proibidos de dobrar durante o dia e a noite da execução de Tiradentes, traidor da coroa. Mas se diz que quando a noite já ia escura e silenciosa, os habitantes insones de Vila Rica puderam identificar o som familiar desse sino.
É compreensível o desejo de fazer as pazes com o próprio fantasma. O traidor, por sua vez traído, condenado à “pena de morte para sempre” (por enforcamento e sem sepultura), assassinado pelo Estado antes do nascimento da nação, para ser então resgatado de sua morte infindável e condenado à vida eterna de um mártir nacional. Faz sentido que seja em Brasília, para começar do zero no plano piloto. E entende-se a sutileza de conectar os dois momentos históricos pela presença abstrata de um som.
Mas cometeu-se o pequeno deslize ou grave erro de relembrar o levante pelo momento de sua repressão. O som que se fez ouvir de novo não é o clamor da revolta nem os sussurros da insurreição, é o som do lamento proibido pela execução de um rebelde. E logo veio o futuro: desde essa mesma praça central da capital projetada para tempos melhores, centenas de novos assassinatos foram ordenados pelo Estado durante as décadas seguintes. E nenhum sino dobrou.
O passado se refaz quando podemos olhar de novo e ver o que esteve fora de foco, o anúncio de um carro chamado Brasília; um círculo cor de café; a imagem de Nossa Senhora em relevo num sino de 1750, o ferro trincado. Todas as badaladas, os dobres e repiques que já fez soar desde então para chamar à missa ou à novena; para contar as horas; para anunciar um incêndio, um batismo, um casamento, um funeral. Os diferentes toques que anteciparam cada enterro: uma mulher, um homem, um padre, um Papa, um monarca. Nenhum para os traidores da coroa, havendo coroa ou não.
Há algo na maneira em que se tocam os sinos em Minas Gerais que tira deles sons que nenhuma igreja europeia já ouviu. É possível escutar nesses toques a presença das culturas africanas que aqui chegaram, nas lembranças recentes de homens e mulheres escravizados e aqui ficam nas lembranças indiretas de seus filhos e netos.
Podemos refazer o passado, ver a sucessão de braços se movendo, rápidos, para alcançar sons que um sino não foi feito para produzir. Os músculos fazendo dobrar os sinos, fazendo dobrar-se o ferro. Podemos ver como paulatinamente, por repetição, os ritmos africanos foram entalhando mudanças invisíveis sobre o sino alemão da capela dos Homens Brancos – o som transitório se impregnando no metal. Podemos olhar de novo para o momento inaugural dessa nossa cidade do futuro, central, branca, ampla, limpa, desenhada com régua. Ver a estrutura de madeira, as amarras, o sino suspenso. Ouvir o discurso, a missa, os aplausos. Mas se escutarmos de novo, hoje, podemos ouvir a presença da nossa herança africana habitando o som desse sino trincado, acostumado à percussão.
¹ Mário Pedrosa. “Brasília, a cidade nova”. In: Arquitetura: Ensaios críticos: Mário Pedrosa. São Paulo: Cosac Naify, 2015, p. 93.
² Em seu discurso durante a cerimônia de instalação do Poder Executivo em Brasília, o presidente Juscelino Kubitschek deixa claro o desejo de aproximar essas duas datas: “A data de hoje tornou-se duplamente histórica para o Brasil porque a gloriosa evocação do passado junta-se agora à epopeia da construção desta nova capital que acabamos de inaugurar. Saudamos assim a um só tempo, o passado e o futuro de nossa pátria, através de dois acontecimentos que se ligam no ideal comum que os animou: o de fazer o Brasil afirmar-se como nação independente.”
Todos os esforços foram feitos para localizar os detentores de direitos das obras reproduzidas, mas nem sempre isso foi possível. Corrigiremos prontamente quaisquer omissões, caso nos sejam comunicadas.