Chegamos ao terceiro pavimento e nos deparamos com um conjunto de obras de Jaune Quick-to-See Smith.
Ela nasceu em 1940 na Missão Indígena de St. Ignatius, nos Estados Unidos, e cresceu em constante deslocamento, porque o trabalho de seu pai como treinador de cavalo demandava que viajassem muito.
Seu estudo formal como artista foi longo e descontínuo, pois teve de ser interrompido várias vezes por necessidades financeiras ou por preconceitos de classe, raça e gênero.
Mas, apesar das dificuldades, a obra de Quick-to-See Smith conquistou espaço no final da década de 1970 justamente por confrontar os padrões eurocêntricos e formalistas do circuito oficial da arte.
Desde 1980, ela também tem atuado como curadora, educadora e articuladora cultural, e seus esforços têm obtido grandes avanços para a luta por reconhecimento da arte indígena americana.
Das 10 obras da artista expostas aqui na Bienal, vou falar sobre uma de 2004 que se chama: “O Que Vem Primeiro (os insetos ou os humanos)”. Ela foi produzida em técnica mista sobre tela e tem um metro e oitenta e dois centímetros de altura por um metro e vinte de largura.
A tela tem o fundo colorido com áreas em branco, amarelo e vermelho, onde a tinta parece escorrer, entrecruzando e sobrepondo cores. Ao centro se destaca a figura de um corpo humano sem a cabeça e sem os braços, como se fosse uma escultura. No peito da figura humana há a reprodução realista de um coração humano, que lembra a imagem de uma mão fechada, em vermelho e amarelo, sobre uma camada de tinta branca, o que faz com que pareça que o coração está iluminado. O corpo tem uma tonalidade acinzentada, seus tornozelos e seus pés são vermelhos. Essa combinação de cores na parte inferior do corpo e no coração dá a impressão de que há calor nessas áreas. Em volta do corpo estão enormes formigas pretas e algumas delas estão com a cabeça encostada no corpo, dando a impressão de que o estão devorando.
A obra de Quick-to-See Smith se encontra no campo da pintura moderna e faz parte dos debates artísticos sobre cultura e linguagem.
Seu trabalho às vezes se aproxima da colagem, às vezes do palimpsesto. Palimpsesto é uma técnica de reaproveitamento de papel da Antiguidade: nessa época, os papiros ou pergaminhos usados eram raspados para que os textos que os ocupavam pudessem dar lugar a outros.
Com essas técnicas, muitas vezes a leitura de um símbolo ou de uma frase empregada pela artista é desafiada pelo modo como ela é recoberta por camadas de tinta ou como se combina com elementos associados a outras simbologias e discursos.
Isso porque sua pintura cria sobreposições de sistemas de representação e modos de compreender o mundo, provocando choques que podem ter efeito crítico, irônico ou enigmático.