Oi de novo. Agora que você já ouviu, na faixa anterior, como esta experiência vai acontecer, eu, Marília Gabriela, vou continuar com você na primeira parte do seu percurso pela 34ª Bienal de São Paulo.
Vamos começar falando sobre algumas peças do Museu Nacional, um dos eixos simbólicos desta exposição. Essas peças, juntas, nos levam a pensar sobre as diferentes maneiras pelas quais o passado resiste e se faz presente.
Os museus são uma das maneiras pelas quais a memória de um povo é preservada, e é essa memória que permite que a gente se lembre e reconheça quem somos. Então o que fazer quando parte daquilo que lembra o que somos é consumido pelo fogo? O que fazer quando uma tragédia varre parte de nossa memória?
Foi isso que aconteceu na noite de 2 de setembro de 2018: a sede histórica do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, foi devastada por um incêndio que destruiu quase a totalidade do acervo histórico e científico da instituição, que abrangia cerca de vinte milhões de itens.
Daquilo que sobreviveu, resgatado pelas mãos sujas de homens e mulheres que lutam para não perdermos a memória, há três itens expostos aqui.
O primeiro é uma rocha que, com o calor do incêndio, se transformou de ametista, com sua coloração violeta, em citrino que tem uma cor amarelada. É uma rocha de formato irregular com cerca de 15 centímetros.
Outro item é o Santa Luzia, o segundo maior meteorito encontrado no Brasil, descoberto em 1921 na cidade de Santa Luzia (atual Luziânia), em Goiás. O meteorito é uma sólida peça de cerca de 1 metro e 30 centímetros com uma coloração e brilho semelhantes ao bronze, pesando quase duas toneladas.
O terceiro item é uma boneca ritxòkò, de cerâmica branca com os cabelos, olhos, boca e vestimentas feitas em tinta preta. Ela está sentada em um banquinho, também de cerâmica branca, feito em uma peça separada, com as mãos sobre as pernas e olha para frente. Tem 18 centímetros de altura, 8 de largura e 5 de profundidade.
Ao contrário das outras duas peças, essa boneca não poderia ter sobrevivido ao incêndio. Na verdade, ela substitui outra boneca, essa sim perdida para as chamas, e foi doada ao Museu Nacional por Kaimoti Kamayurá, da aldeia Karajá de Hawaló, na Ilha do Bananal, no Tocantins, para ajudar na reconstituição da coleção. A boneca pôde ser substituída, pois seu significado transcende sua presença e até mesmo sua existência física. Mas, no caso do acervo perdido, foi uma exceção.
Reunidos, esses 3 objetos nos mostram como resistir pode tomar diversas formas. Para o meteorito, que atravessou o espaço e queimou na nossa atmosfera, as temperaturas que atingiram o Museu Nacional não foram nada: ele já havia sobrevivido a condições mais extremas. Para o citrino, então ametista, uma transformação se deu, e embora sua aparência tenha mudado, essencialmente, a pedra continua a mesma. A boneca ritxòkò que fazia parte da coleção não sobreviveu, mas o objeto importava muito menos que seu significado, e um novo gesto de generosidade permitiu que ela tenha encontrado seu caminho de volta ao Museu Nacional.