Ao longo do processo de construção da 34ª Bienal de São Paulo, sua equipe curatorial, artistas participantes e autores, através de cartas como esta, refletem direta e indiretamente sobre o desenvolvimento da exposição. O texto abaixo foi escrito por Brandon LaBelle e será reproduzido em sua versão completa no catálogo da 34ª Bienal, a ser lançado em setembro de 2021.
Entrevista com um palhaço
Poucos anos atrás, quando eu visitava arquivos sobre palhaços no leste do Kentucky, tive a grande sorte de encontrar um proprietário de circo aposentado chamado Z, que, com sua aptidão para a pesquisa, reuniu uma notável coleção de entrevistas com palhaços (em sua maioria estadunidenses) entre 1979 e 2015. [...] Depois de algumas horas sondando as profundezas da coleção de Z, tive o prazer de encontrar uma pasta que ainda hoje cativa minha imaginação, e à qual eu volto com certa frequência, quando me pergunto o que há na arte dos palhaços que me atrai tanto. Essa pasta simples continha vários materiais: diversas fotografias [...]; recortes de recibos e de jornais [...]; algumas cartas que infelizmente não pude decifrar, pois haviam sido rabiscadas de tal forma que se tornaram incompreensíveis; […] e finalmente, uma pilha de páginas com uma entrevista que o próprio Z havia realizado com esta figura magricela – que chamarei simplesmente de "Doc”, por uma obrigação de manter sua identidade incógnita e, também, por que está claro que o palhaço em questão era na verdade um performer com inclinação filosófica. (Eu digo “era” porque Doc faleceu pouco após a entrevista final ter sido feita, em 2015.) [...]
Z: Podemos começar com risos?
Doc: Você quer dizer que deveríamos rir?
Z: Bem, podemos rir, certamente, mas eu estava pensando que talvez pudéssemos falar sobre o riso?
Doc: Sim, este é realmente um assunto especial. Totalmente. A energia...
Z: Esta energia?
Doc: O corpo no limite.
Z: No limite? Do quê?
Doc: Perder o controle. E... o limite.
Z: Mas o riso é extremamente social, não é?
Doc: Ele é, e não é... Eu diria que ele imediatamente nos enche de algo incontrolável. O riso é sempre disruptivo. Como eu disse, o limite.
Z: Ele de fato cruza fronteiras, por exemplo, em situações de ridículo; entendo seu ponto...
Doc: Mas é mais fundamental. Como diz Cixous, “O riso está alinhado com o monstruoso”.¹
Z: Você se sente um monstro?
Doc: Sou um monstro, precisamente, porque sou inominável.
Z: Mas eu sei seu nome, eu acho...
Doc: Sem dúvida, há uma palavra que designa este corpo, e que você pode usar para me chamar, para falar sobre mim, isso está claro. Mas ao mesmo tempo – e isto é o que me cativa – aqui chegamos ao ponto crucial da questão – sou também aquele que escapa ao nome – este é o meu trabalho, a minha função, é isso que sou chamado a fazer: criar incerteza. Personificar a margem.
Z: O riso é uma expressão de incerteza?
Doc: É sem dúvida a expressão de uma certa fronteira. Ele mostra essa fronteira, ao cruzá-la.
Z: Isso me faz pensar no que Georges Bataille escreve sobre o riso, como algo ligado ao não-conhecimento. Essa fronteira, como você diz, do que conhecemos. É isso?
Doc: Daquilo que pode ser conhecido?
Z: Do que o conhecimento pode captar, porque sempre há uma periferia do conhecimento. Pode-se dizer que o conhecimento é assombrado por algo que está fora dele.
Doc: A margem do entendimento... Sim, mas é definitivamente uma questão do corpo – não é apenas cerebral... Esse não é o ponto.
Z: Mas voltando ao riso, como você se sente em relação a ele?
Doc: O riso é como uma suspensão do tempo, ou talvez uma suspensão das regras. É um grande movimento, de tudo, como uma ruptura – é tão belo e tão perigoso ao mesmo tempo. Mas devemos lembrar, o palhaço não ri – deve-se rir dele, e essa é uma posição. A posição.
Z: Ser o objeto do ridículo?
Doc: Se necessário, certamente, mas também de prazer radical. Daquilo com que os outros talvez possam apenas sonhar.
Z: Sempre fico impressionado com a quantidade de vezes que rimos em meio a uma conversa. Há tantos momentos, e tantos tipos diferentes de riso que ocorrem entre pessoas conversando. E, no entanto, ele está tão distante da fala.
[…]
Doc: E é por isso que estamos tendo essa conversa, certo?
Z: Certo.
Doc: A imaginação política... Penso que nossos tempos são desesperadores, e um dos motivos para que eu diga isso é que acho que as pessoas sentem falta de certo nível de compartilhamento, de estarem juntas, de tempo para se abrirem mais umas com as outras. Hoje há muitos conflitos, mas também há muitas coisas que podemos fazer juntos, especialmente em termos de renovar ideais utópicos. O erótico... o desejo... Eu...
Z: Quer dizer, organizar?
Doc: Não, eu quis dizer, poetizar.
Z: E o que é poesia para você?
Doc: O rastro de uma ideia... a margem do significado... Não sei dizer.
Z: O palhaço é poético?
Doc: Totalmente! Ele nada mais é que poético – o palhaço desfaz a razão, ele está do lado do indizível. Ao menos é isso o que me interessa na arte dos palhaços, especialmente o modo como ela nos traz para o corpo – tudo o que tenho é o meu corpo, e os palhaços nos põem em contato com o corpo como um poder, um tipo de sabedoria do corpo – talvez eu possa até dizer bruxaria, sabe? Lógica medieval, homeopatia, alquimia... É realmente uma questão de insensatez... e do poder do riso.
¹ Hélène Cixous, Le rire de la Meduse. Paris: L'Arc, 1975.
Brandon LaBelle (Tennessee, EUA, 1969, vive em Berlim) é artista, escritor e teórico. Sua pesquisa aborda voz, agência e vida social e seus projetos artísticos são guiados por metodologias horizontais e situadas, envolvendo variados contextos internacionais e diversos públicos. Ele é autor de The Other Citizen (2020), Sonic Agency (2018), Lexicon of the Mouth (2014), Diary of an Imaginary Egyptian (2012), entre outros.