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21 Fev 2017
O ato indígena de educar(se), uma conversa com Daniel Munduruku
Transcrição de encontro realizado em 5 de julho de 2016, como parte da ação de difusão da 32ª Bienal: Programa de Encontros no Masp

Daniel Munduruku: É possível viver algo criativamente no agora? Toda a educação desses povos, dessa população e cultura é baseada nessa visão, não é? Nessa compreensão de um pertencimento a um tempo que se chama hoje. E é sobre isso que eu queria conversar com vocês. Antes de mais nada, gostaria de me apresentar, porque normalmente, quando olham para mim, é comum as pessoas me identificarem com um…

Público: Índio!

Daniel Munduruku: Como?

Público: Índio!

Daniel Munduruku: Com um cara bonito. [risadas] Sim, e depois com um índio também, é verdade. E isso vem com uma imagem que foi sendo construída ao longo desses 500 anos e que gerou na cabeça das pessoas uma visão estereotipada. Dizem que o Daniel parece com um índio: ele tem cara de índio, cabelo de índio, maçãs do rosto de índio, olhinho puxado de índio, e claro, corpo esbelto de índio também [risadas do público], portanto, isso o torna um… índio. E as pessoas insistem em me chamar dessa maneira. Pois bem, apesar de toda essa aparência, de tudo isso que me caracteriza como índio, queria dizer para vocês que eu não sou índio. E mais: não existem índios no Brasil. Tudo isso é uma bobagem. Se estiverem chocados, façam: “Oooooooh”. [risadas] Vamos começar, para vocês aprenderem como é se faz. Então, queria dizer que apesar da minha cara de índio, meu cabelo liso de índio, meu olho puxado de índio, as maçãs do rosto de índio e esse corpo esbelto de índio, eu não sou índio.

Público: Ooooooh!!

Daniel Munduruku: E eu diria mais a vocês: não existem índios no Brasil.

Público: Ooooooh!!

Daniel Munduruku: Muito bem, vocês aprenderam rápido. [risadas no público]

Daniel Munduruku: Brincadeiras à parte, quando eu faço essa afirmação, as pessoas realmente ficam impactadas, porque já está muito registrado na cabeça delas que, por causa da minha aparência, eu sou um índio. Mas não é assim que eu me vejo. E não é assim que eu vejo as populações ancestrais do Brasil. O que vocês estão vendo, na verdade, é uma imagem que foi sendo produzida ao longo do tempo. Resolveram nos batizar, ou melhor, nos apelidar, por essa palavrinha, que é maldita. Não só maldita no sentido da maldição, mas também no sentido do dizer mal. É uma palavra que manifesta uma determinada postura das pessoas com relação à minha pessoa. Por isso eu digo que é um apelido que nos colocaram. Não sabiam como nos chamar e disseram que nós éramos os tais dos índios, porque erraram o caminho para chegar às Índias – essa conversa que todo mundo já conhece e que acabou determinando que os habitantes dessas terras se chamariam índios. Correto? E além de ser uma história mal contada, a palavra índio não significa absolutamente nada. Se vocês tiverem curiosidade de olhar num dicionário depois, vão descobrir que a primeira entrada do Aurélio, por exemplo, diz o seguinte: “É o elemento químico nº 49 da tabela periódica”. Fiquei tão feliz quando soube disso...

[risadas no público]

Porque já era conhecido como preguiçoso, selvagem, canibal, atrasado... E agora, um elemento químico? Me senti orgulhoso, imagina. E essa palavra descrita dessa maneira me suscitou outra questão: “índio” não é radical de “indígena”. Não sei se vocês sabiam, mas é só uma mera coincidência chamar alguém de índio ou indígena. A palavra “índio” não tem significado específico em nenhum dicionário. Quando muito a definição afirma assim: “Relativo aos primeiros povos”. Ela também não diz quem nós somos. Mas, com o passar do tempo, foi revelando o que as pessoas pensavam a nosso respeito. Esse termo é um apelido. E vocês sabem que não existem apelidos positivos. Todo apelido é uma negação. E “apelido” é uma palavra que nega aquilo que uma pessoa, um grupo ou uma coisa é. Então, ao colocarmos um apelido em alguém, afirmamos o que a gente acha do outro. E normalmente a gente acha que o outro é uma coisa ruim. Seja pela condição social, seja pela cor da pele, pela opção sexual ou pelo que for. Sempre vamos jogar no outro a visão que temos dele. As crianças, com quem eu converso muito, são ótimas em colocar apelidos e vocês sabem disso. Os apelidos delas são muito certeiros porque elas sabem machucar. E o apelido serve para isso, para machucar. Eu diria que, ao reforçar a palavra “índio” nas pessoas, estamos nos reportando também àquilo que pensamos desses grupos humanos a quem chamamos de índios. Quando ouvimos “índio”, normalmente temos duas posturas. A primeira postura é romântica, aquela ideia do bom selvagem de José de Alencar e companhia limitada: “Ah, o índio é bacaninha, vive lá no meio da floresta, é o nosso passado, gente boa, gente de bem, olha lá, não tem ganância, vive uma vida social muito tranquila, nem bebe Coca-Cola...”. Esse é o sonho de consumo de todo mundo, não é? Não a Coca-Cola, mas ser índio. E a escola reforça ou reforçou durante muito tempo essa visão, foi ela quem difundiu esse olhar romântico. Não à toa, a escola celebra com grande alegria o dia 19 de abril, que é o dia do…

Público: Índio.

Daniel Munduruku: Sim, é o dia do índio. Mas a pergunta que não quer calar é: que índio é esse? Qual é o índio que a gente celebra no dia 19 de abril? É o índio do nosso imaginário. Não é um índio real. Esse índio, que foi sendo tramado dentro da nossa formação, não existe. E aí entra a minha afirmação: eu não sou e não existo. Porque esse índio é um ser que foi sendo plantado na nossa história, e nós fomos sendo obrigados a tratá-lo como ser folclórico. Não olhamos para o indígena como um ser humano. Olhamos a partir desse olhar romantizado ou – e essa é a segunda postura – olhamos pelos olhos da ideologia que mora dentro da gente, quer queiramos ou não. Provavelmente, a maioria de vocês já ouviu a afirmativa de que índio é preguiçoso, certo? “Índio atrapalha o progresso, o desenvolvimento”. “Índio tem muita terra, pra que tanta terra pra esses índios?”. “Os índios são todos fajutos, não contribuem para o Brasil crescer”. Certamente vocês já ouviram algumas dessas coisas, que, aliás, estão na mídia direto, não é? Esse é o outro olhar, que também mora dentro da gente. Inclusive quando dizemos assim: “Ah, eu também sou índio, minha vó foi pega, ela era bugre legítima”. Já ouviram essa expressão? Isso mora dentro da gente, inclusive como justificativa, para pertencermos a essa ancestralidade. E esse é um pertencimento violento, inclusive. Quando as pessoas me chamam de índio, eu fico irritado. Não gosto, não. E não gosto porque não me identifico com aquilo que falam a meu respeito. Essa palavra define o que eu não sou. Ou reafirma uma visão romântica, ou uma visão ideológica. E nem uma nem outra diz o que eu sou. Pelo contrário.

E o que diz o que eu sou? A minha identidade, não é? O meu nome, como eu me apresento para as pessoas. É a maneira como eu me identifico e, nesse caso, quero lhes dizer que índio eu não sou. Mas eu sou Munduruku. Ser Munduruku é diferente de ser índio. Ser Munduruku é diferente de ser Wapichana, Kaiapó, Xavante, brasileiro. É diferente. Ser Munduruku é ter uma ancestralidade, uma leitura do mundo, um jeito de ser humano diferente dos outros povos. E é a partir desse lugar, do ser Munduruku, que eu falo para vocês. Eu não falo como representante. Aliás, as pessoas gostam muito disso não é? Quando vão fazer um seminário, querem dar voz ao “índio”. Chega o índio, de preferência fantasiado, com o cocar, as pinturas, e essa figura representa os índios do Brasil. Quando ouço isso, acho muito estranho. E quando me convidam, eu me recuso a participar. Justamente porque não vejo nenhuma dignidade em falar em nome de outra pessoa quando aquela voz não me foi dada de fato. Quando aquela voz é só a representação de uma imagem. Às vezes não querem ouvir a fala de um indígena, querem uma figura que continue reproduzindo a visão mágica e romântica que as pessoas têm ou querem manter. Então, diante disso, eu sempre fico muito inquieto. Inclusive por imaginar até quando o Brasil vai continuar tratando tão mal a sua diversidade ancestral, e quando eu falo em diversidade, falo de uma coisa grande. Para vocês terem uma ideia em termos de número, são 307 povos presentes em todos os estados brasileiros. E eu falei de povo, não de tribo. Não falei de pedaço de povo, que é uma tribo. E sim de um povo inteiro, independentemente se esse povo tem dez ou 15 mil pessoas. Dentro do nosso território nacional existem 307 povos e, conforme os dados da pesquisa de 2010 do IBGE, são faladas cerca de 276 línguas indígenas. No entanto, todos nós aprendemos que a casa na língua do índio é... como se chama a casa do índio?

Público: Oca.

Daniel Munduruku: Ah, vocês sabem disso. A casa do índio é oca. Como chama o deus do índio? Tupã? Ah, viva! Como chama o chefe?

Público: Cacique.

Alguém do público: Murubixaba.

Daniel Munduruku: Murubixaba! Você viu isso num livro antigo. Até eu me surpreendi com essa! Como é o chefe religioso?

Público: Pajé.

Daniel Munduruku: E a criança?

Público: Curumim.

Daniel Munduruku: Curumim, muito bem! [risadas no público]

Daniel Munduruku: A resposta é exatamente essa, mas o erro está na pergunta. Quando pergunto como se chama a casa na língua do índio, levo vocês a uma resposta óbvia. Mas a minha pergunta não está correta. Pois, uma vez que existem 276 línguas, são 276 maneiras diferentes de chamar casa. E casa, para o indígena, não é só o lugar simbólico. A casa é também o lugar da realização das pessoas, da organização social, onde não apenas se vive, mas também se enterram os mortos, em muitos casos. Portanto, a compreensão de casa, moradia, que se tem na cidade, é muito diferente dentro dessa diversidade linguística. E tudo isso é desconsiderado na escola quando a gente comemora o dia do índio. As escolas capricham na decoração, no enfeite, nos indiozinhos, na exposição, no ensaio da música da Xuxa, “Índio fazer barulho”. E depois os pais das crianças, pintadas com duas faixas vermelhas no rosto, com um cocar feito de cartolina, uma saia de garrafa pet, porque é ecológico, saem felizes da escola porque finalmente relembraram a presença do índio. Está na hora de rompermos com isso. Precisamos começar a chamar esses povos pelo nome, dizer quem eles são de fato, onde estão, como vivem, e por que, na nossa contemporaneidade, existe um massacre dessas populações. O Brasil tem que começar a olhar para o seu passado, mas não com vergonha. Olhar com respeito. Eu costumo dizer que o Brasil é um país adolescente. E o adolescente vive uma crise de identidade, não é? O adolescente não sabe quem ele é. Às vezes é criança, às vezes, adulto. O Brasil é um país adolescente que está se descobrindo. Perto de tantos outros países da Europa, não temos milhares de anos de história. O Brasil é só um adolescente buscando a própria identidade.

Mas por que o Brasil não consegue de fato chegar a essa identidade? Porque ele não quer mais ser criança. E ser criança significa olhar para o passado. E quando o Brasil olha para o passado, ele não gosta muito do que vê, ele tem vergonha do que ele vê. Ele não tem vergonha da história, mas do fato de que os primeiros povos ainda estão presentes no cotidiano. Seria muito mais fácil olharmos para as populações indígenas e falar, “foi legal, eles viveram aqui, nos ajudaram, mas agora já era”. E as populações indígenas não dizem “agora já era”. Eles afirmam “estamos aqui e estamos aqui para ficar”, “ vocês vão ter que me aturar”, como diria Zagalo. “Vão ter que me engolir”. E o Brasil ainda tem essa atitude, eu digo Brasil de uma maneira muito genérica, obviamente. Mas eu vejo o Brasil um pouco perdido nesse resgate de identidade. E é importante fazer esse resgate e colocar a história a limpo, não é? A história como deve ser contada, por todas as vozes. E que essas vozes possam definitivamente ser ouvidas, com o direito garantido de fala, de poder contar sua história, para que de fato o Brasil consiga passar da adolescência para uma vida madura, uma vida adulta, onde todo mundo tem espaço. Então, eu sou Munduruku. Pertenço a esse povo. Aliás, talvez a maioria de vocês nunca tenha ouvido falar de Munduruku, não é? A grande maioria nunca ouviu falar essa palavra. Mas certamente vocês já ouviram falar de índio, certo?

Público: Sim.

Daniel Munduruku: Por quê? Ao aprendermos essa palavra, nós não aprendemos a chamar os povos pelo nome. Então, ser Munduruku, nesse processo educativo, foi uma coisa diluída. E o povo Munduruku existe, viu? É um povo grande, com cerca de 15 mil pessoas. Nós estamos presentes em três estados brasileiros: no Pará, de onde eu sou oriundo, com muito orgulho; no Amazonas, que foi onde o povo teve o primeiro contato com a sociedade brasileira e, mais recentemente, um grupo pequeno migrou para o Mato Grosso. Além disso, tem Munduruku aqui em São Paulo, no caso, eu. [risos]

O povo Munduruku tem contato com a sociedade brasileira há trezentos anos. Além disso, temos uma característica só nossa: somos o único povo no Brasil que tem o hábito guerreiro de cortar a cabeça dos inimigos para fazer de troféu, por isso não mexam comigo... [risos] Essa é uma característica do povo Munduruku desde sempre, mas a partir de 1910, quando ele se estabeleceu no norte do Brasil, a caça às cabeças vai deixando de ser importante. Mas é um povo que sobreviveu a grande parte da história do Brasil e que hoje briga contra a construção de uma hidrelétrica no seu lindo rio Tapajós, um dos rios que corre nas áreas dos Munduruku e de seus vizinhos. É um povo, portanto, que teve de se adaptar ao novo tempo. Se antigamente tinha o hábito de andar sem roupa, hoje em dia anda com roupa por uma questão de necessidade, porque descobrimos, de uma maneira muito infeliz, que aqueles que chegavam não conseguiam respeitar o corpo dos outros. De modo que não colocamos roupa porque nos civilizamos, colocamos roupa para evitar que os tais civilizados se tornassem muito selvagens com a gente. E depois ainda foi preciso aprender a comer miojo. [risos]

Portanto, o povo Munduruku teve que aprender a falar português e precisou entrar no processo civilizatório, mas isso não deixa de ser uma forma de resistir. Não penso que entrar no processo, fazer parte da cidade, seja uma forma de se entregar. Pelo contrário, é uma resistência. Porque na medida em que aceitamos o que o outro nos oferece, garantimos condições de vida. Os povos do Nordeste brasileiro também fizeram esse processo. Massacraram os que estavam lá, começou a colonização, se obrigaram a fazer parte de um processo civilizatório, se esconderam dentro da constituição social da época, para manter suas culturas vivas. Nesse contexto, o que faz a ideologia? A ideologia se dá o direito de dizer o que somos. Então, normalmente, embora eu tenha essa aparência, a maioria das pessoas vem falando, “o Daniel já escreveu cinquenta livros, foi pra universidade, é doutor em educação, dirige um carro em vez de uma canoa, tem um iPhone… Ah, o Daniel não é mais um índio legítimo. Ele é um dos nossos agora”. Muita gente pensa isso justamente porque é o que a ideologia nos faz pensar. Porque a ideologia se dá o direito de dizer que nós só somos o que somos se a gente estiver no meio da floresta, vivendo na redoma que o processo civilizatório criou para nós. Se sairmos dessa redoma, se morarmos em São Paulo, usarmos um carro ou acessarmos a internet, eles dizem que nos entregamos ao sistema, que agora as coisas estão fáceis. O pior é que isso está muito presente. Eu viajo bastante pelo Brasil e escuto isso em todos os lugares por onde passo, de todos os públicos. Das crianças até os intelectuais da universidade. O pensamento é mais ou menos o mesmo. Isso só ameniza um pouco quando eu ponho o meu cocar. Aí dizem: “Agora sim!”. Porque só ter cara de índio não basta. E isso é muito sofrido para nós, porque o tempo todo temos de justificar para as pessoas quem somos. Precisamos convencer as pessoas de que só porque uso uma calça jeans ou um tênis importado não deixei de ser quem eu sou. Não, não é assim. É uma luta de convencimento constante, justamente porque, dentro da cabeça das pessoas, continua pulando o conceito prévio a respeito do que somos nós. Não à toa vivemos todo esse processo de massacre das populações indígenas do Noroeste.

Bom, isso foi só o princípio da conversa. Mas eu fiz esse primeiro chamado para dizer a vocês que, quando mencionamos educação indígena, temos que pensar nesse conjunto de coisas. Apesar de não ser possível falar de uma educação indígena, efetivamente, podemos apontar alguns princípios que regem a educação dos vários grupos indígenas no Brasil. Não posso tratar de educação indígena sem clarificar para vocês que falo a partir do lugar de pesquisador e, também, de observador, de quem vai às áreas, olha, convive com a parentada e tira elementos dessa vivência para compor, digamos assim, uma teoria, uma doutrina a respeito da educação indígena. Grosso modo, quando pensam no indígena, as pessoas pensam nesse conjunto de elementos que eu disse a vocês, pensam no exótico, e, muitas vezes, não imaginam o que esse exótico produz em termos educativos, econômicos e sociais, de que forma esses grupos nos ajudam a refletir sobre a nossa própria humanidade. Afinal de contas, quando falo em 307 povos, são 307 formas de ser humano. Portanto, ser humano não é uma experiência única, são experiências diversas. E essas experiências precisam ser apreendidas também para sermos capazes de compor o que há de humano em cada um de nós. Tanto que, ser brasileiro não é só uma ficção. Nós também somos frutos de outras experiências de humanidade. Nascer brasileiro significa ter presenças indígenas, africanas e europeias dentro da gente, presenças de humanidade desses outros lugares. E é com esse olhar de humanidade que a gente precisa pensar os elementos da educação indígena. Pois bem, vou falar um pouco da minha experiência como parte da educação. [Deixa eu olhar aqui no meu iPhone, para não deixar a hora me pegar muito]. Queria falar justamente de alguns princípios da educação indígena que norteiam um pouco todo esse ser indígena. O que nos forma como humanos, como indígenas, certo?

Primeiro, então, eu vou falar a partir da minha experiência como Munduruku, certo? Vocês sabem que as populações indígenas normalmente dividem o tempo em rituais, sobretudo de maioridade. Esses rituais de passagem são uma quebra no tempo. Para o povo Munduruku só existem dois tempos: o tempo do passado, que é o tempo da memória, e o tempo do presente, que é o tempo do agora. Na língua Munduruku, não existe a palavra futuro, simplesmente porque o futuro não existe. A língua Munduruku é concreta, ela opera a partir de coisas muito palpáveis, e o futuro, como vocês sabem, não é nada palpável. Ele é uma especulação. Não à toa, ele foi gerado, é uma palavra que foi inventada pela economia. Existe alguém mais especulador que economista? Esse termo foi concebido numa tentativa de congelar um tempo que nós não temos. Por isso criaram os bancos e a poupança. A poupança é a garantia de felicidade. A aposentadoria é nossa segurança de que seremos felizes um dia, e o tempo inteiro jogamos a nossa expectativa de felicidade para um tempo que não temos. Dessa forma, vivemos buscando, não vemos a hora de nos aposentar para finalmente sermos felizes, não é mesmo? O povo Munduruku não tem a palavra futuro. Nós só temos o passado e o presente. E educamos as crianças dentro dessa perspectiva. A quebra no tempo é feita justamente pelos chamados rituais de passagem. Nós cortamos, dividimos, digamos assim, o presente de cada fase. Então, no meu povo, se é criança até mais ou menos nove anos de idade. Até essa idade todos os espaços estão liberados, obviamente, dentro do cuidado que os adultos têm com as crianças. Nesse período é possível fazer tudo porque entendemos que criança precisa ser criança. A gente nunca faz aquela famosa pergunta para uma criança: “O que você vai ser quando crescer?”. Você sabe disso? Alguém perguntou para vocês isso? E não fazemos essa pergunta por um motivo muito simples: as crianças não serão nada, porque elas já são tudo o que precisam ser, ou seja, são crianças. Cabe aos adultos darem todas as possibilidades para elas serem plenamente crianças. Porque, quando passa dos nove anos, ela se torna o que chamamos de adolescente... O adolescente é um menino ou menina de nove a quinze anos de idade. Essa é uma fase importante de crescimento, porque quando chegamos aos quinze já somos adultos. A gente passa pelo ritual de maioridade e vira adulto e, como tal, temos outro status, esquecemos que um dia fomos adolescentes. Porque, até essa fase, já teremos vivido tudo o que um adolescente precisa viver. A pessoa já terá amadurecido, já saberá construir sua casa, caçar, pescar, subir na árvore, nadar no rio e cuidar de uma roça. Porque é isso que alguém precisa saber para virar um adulto. E, nesse processo, ela vai aprendendo a lidar com os aprendizados, que passam inclusive pelo corpo. E nesse aspecto o papel dos pais é muito importante. Os pais educam o corpo da gente. São eles que nos ajudam a compreender todo esse processo. Porque em pouco tempo a gente se casa, e casamos obviamente com a finalidade de sermos avós. A gente não casa para ser pai e mãe. Casamos para sermos avós. Mas no meio precisamos pagar um pedágio, justamente ser pai e mãe e ajudar na educação do corpo dos nossos filhos. Se vamos nessa batida, chegamos aos 32, 33 anos já como avós. Se há uma coisa que o Munduruku quer ser na vida, é ser avô. E por quê? Porque o avô é quem educa o espírito da criança. Os pais educam o corpo – o pai ensina a caçar, pescar, a mãe ensina a cuidar da roça e da casa –, mas quem educa o espírito das crianças e dos jovens são os avós. Mas é claro que aos 33 anos ninguém é um avô, no sentido mais amplo do termo. Ainda precisa passar por mais uma graduação ou uma pós-graduação e, se tudo der certo, aos 45, 50 anos já será bisavô e terá subido mais um degrau. E com sorte aos 65 será tataravô. Opa! Esse é o nosso velho, o tipo de velho que queremos ser. Alguém que terá visto três gerações. E se a vida der um plus, um dia ele ganha o privilégio de ter 80 anos e ver quatro gerações. Esse é o cara que queremos ser, alguém que passa a ter um papel fundamental. E o mais importante: o povo Munduruku não tem vergonha de ser velho. A gente sabe que precisa passar por todas as fases anteriores, como em um bom jogo de videogame, para chegarmos nessa fase final, para sermos um avô e olharmos para trás com a certeza de que tudo valeu a pena. Então, nossos velhos não têm vergonha de serem velhos. Às vezes eu fico um pouco chocado aqui na cidade, primeiro porque tem muito adolescente de 45 anos. Nunca mais larga a casa. E lá nossa adolescência é até os 15 anos. Tchau e benção, não é? E depois, outra coisa, muitos velhos aqui querem ser cocotinha, não querem assumir seu papel importante de avô e avó. Gente, isso é muito sério, porque no nosso povo, quem dá o referencial para o jovem são os velhos, os avós. E se esse avô falta, o adolescente e a criança ficam meio à deriva. Imagine que isso acontece em uma comunidade indígena onde todo mundo cuida de todo mundo. Eu fico imaginando como é isso na cidade grande, em que as pessoas cuidam só de si e às vezes ainda cuidam mal. Os jovens ficam realmente perdidos, ficam à deriva. Em uma sociedade indígena não existe criança sem lar, abandonada. As crianças pertencem a um contexto social, amplo, em que elas são educadas por todos. Inclusive, a escola entrou nas comunidades indígenas para desagregar, para criar outro modelo de sociedade. Porque a escola tradicional indígena não tem professor. Lá tem os papéis sociais do pai, da mãe, da comunidade que educa. A comunidade inteira é educativa. Todos os espaços são educativos. Não tem essa coisa de construir um prédio especial para a criança ir e ficar prisioneira durante várias horas do dia sem poder ser criança. Sem poder exercer sua liberdade criativa, pois é nessa hora que a criança cria e aprende coisas junto com a comunidade como um todo. Nós não temos proibições para as crianças, elas podem ver os pais conversando sobre qualquer assunto. Não tem coisa de adulto e coisa de criança. As pessoas se integram naturalmente dentro uma vida social que aprendem a olhar e dizer “poxa, isso é assim, aquilo é daquele jeito, eu tenho que compartilhar algo nessa situação, ou proceder daquele outro jeito em outra situação”. Então, essas fases são fundamentais para que cada segmento sirva como base para o que vem antes e depois dele. Ser criança é ser criança. Ser adolescente é ser adolescente. Ser adulto é ser adulto. E ser velho é ser velho. Ponto final.

Dentro desse processo educativo, cabe ao avô formar o nosso espírito. E como ele faz isso? Ele conta histórias para nos ajudar a perceber nosso pertencimento ao local em que estamos. As histórias indígenas não são fantásticas, são histórias muito concretas. Mas quando elas saem de seu contexto de origem e são trazidas para a cidade, muitas vezes as pessoas não conseguem interpretar ou não conseguem se colocar no lugar do outro. Nesse sentido, queria chamar o Cristino. Ele, que ao contrário de mim é avô, vai contar uma dessas histórias para gente. Ele é um bom contador de histórias...

Cristino Wapichana: Isso não tava combinado, tá? Imagine o nervosismo. Vamos dizer que a história que eu vou contar foi colhida em 1865 pelo Couto de Magalhães. É uma história Inambé do norte do Pará. Mas antes de contar essa história, eu queria falar um pouco sobre Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, que é da região do meu povo. Vou falar só um pouquinho.

Mário de Andrade, vocês já devem ter lido Macunaíma e outras grandes obras dele, foi um cara genial. Morreu aos 52 anos, mas deixou uma história e uma obra esplendorosa. Dizem que ele namorou com uma moça alemã, em um dos trabalhinhos que ele fez, acho que para uma biblioteca, e com isso ele aprendeu alemão. Ele não sabia a razão da facilidade de aprender, mas aprendeu. Quando escreve Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, ele consegue informações de um alemão chamado Theodor Koch-Grünberg, que esteve em Roraima entre 1911 e 1913. Esse alemão saiu de Itu, via rio Negro, e foi de canoa até a ocupação de Roraima, até o rio Orinoco, na Venezuela. Nesse trajeto, ele colheu muitas histórias, e uma delas foi a de Macunaíma. Na verdade não é Macunaíma, mas Macunáima. Só que Mário de Andrade colocou Macunaíma. Macunáima fez muitas peripécias, inclusive uma das famosas: quando era menino, ele morava com a família, e o irmão Zizé já era casado. À noite ele dizia que queria fazer xixi e que queria ir com a cunhada – quando chegava lá, ele virava homem e traçava a cunhada. Essa é uma das histórias. Outra história é que ele morre, matam ele, mas ele mesmo ressuscita. Tem uma série de coisas, mas Macunáima, para a gente e para vários povos na fronteira do Brasil com a Venezuela e República Federativa da Guiana, é um semideus. Quando o Mário leu isso, e achou o máximo, ele leu em alemão. Criou toda a história, e foi para Araraquara, numa fazenda da família, e pasmem, conseguiu escrever Macunaíma em seis dias! É um gênio ou não é? Vocês não conheciam Macunáima, certo? Vocês conheciam Macunaíma, que é o herói sem nenhum caráter. Para a gente, Macunáima é um semideus e temos grande respeito por ele. Quando o livro começa dizendo que ele nasceu no rio Urariquera, numa noite escura, nasceu negrinho e tal, eu conheço Urariquera e posso dizer que ele não nasceu lá. E então ele fala da Muiraquitã, mas ela não é de lá, é da parte do Amazonas no Pará. Quando vem para o Mundaqui, ele coloca Ceiuci. Diz que Ceiuci tem duas filhas, e casa com uma delas, mas Ceiuci só tinha uma filha. Quando Ceiuci começa a persegui-lo, ele vai até não sei onde na Argentina. Então, o que acontece? Mário de Andrade desloca essa história, ele transforma isso. Vocês conhecem um Macunaíma que não tem nada a ver com o Macunaíma que eu apresento aqui. O que vocês entenderão? Exatamente isso. Ele mistura também com uma história do Centro Oeste, com a história da estrela Tahína-Kã, que é do povo Carajá, e aí aqui em São Paulo, ele até diz que ele tem uma namorada, que as mulheres brancas eram nascidas da mandioca, né? Mandioca branca, que é uma das espécie de mandioca. Também tem a mandioca amarela. Bom, ele cria uma confusão nessas histórias. O Daniel tentou explicar aqui que não é nada disso. Como vocês não têm a compreensão do local, porque essas histórias são geograficamente localizadas, fica tudo confuso mesmo. Eu vou contar a história da Ceiuci.

"Havia uma mulher que criava um filho, talvez dessa altura assim, ele era bem corajoso e não tinha medo de nada. Eles moravam numa casa perto de um rio. Desse lado vinha um rio grande. Bem aqui, um rio bem pequeno, um igarapé que caía nesse rio, eles moravam aqui. O menino gostava de pescar. E o homem tem que cuidar de manter a casa. Ele falava:

– Mãe, hoje eu vou pescar.
– Cuidado com Ceiuci!
– Que Ceiuci que nada, mãe! Não tenho medo de Ceiuci.

O menino, bem cedinho, antes do sol nascer, só avisava: ‘Mãe, eu vou pescar’. Não adiantava a mãe falar nada. Ele ia. Menino muito esperto. Nesse igarapé tinha uma árvore deitada sobre o rio, e o menino fez um jirau em cima. Tinha medo da cobra grande, acredito. Mas dali ele também podia ver os peixes, e subia com seu cesto, suas caixas e, se via um peixe, puxava com a cordinha amarrada na flecha e colocava no seu cesto. O sol já estava começando a aparecer. O cesto já estava quase cheio, quando ele olhou para o rio, viu alguém remando: chá, chá, chá! Quem estava remando pegava a rede, arrancava, jogava a rede e puxava. Rapidamente, comia aqueles peixes todos que caíam na canoa, comia cru e muito rápido. Ah, o menino reconheceu na hora. Quem era?

Público: Ceiuci.

Cristino Wapichana: Só podia ser. E ela vinha e remava, chá chá chá, pegava sua rede e comia tudo rapidamente. O menino, a coragem dele, foi embora. Ele começou a se encolher e ficou ali quietinho. Ceiuci se aproximava cada vez mais, jogava a rede de comer e pegava todos os peixes. Quando Ceiuci chegou perto, ela olhou e viu o menino. Rapidamente preparou, jogou e puxou a rede. Pegou? Não. Tinha uma coisa estranha. Armou a rede, jogou. Pegou?! Não. O menino se ajeitou, riu, hehehehe.

– Aaaaaaah, meu neto, você está aí!? Desce, meu neto!
– Um um.
– Deeesce, meu neto!
– Um um.
– Desce, senão eu mando as tucandiras. – Tucandira é uma formiga deste tamanho que quando dá uma ferroada dói por mais de 24 horas. Quando ela falou, aquelas tucandiras começaram a subir na árvore, tec tec tec tec.

O menino, que era muito esperto, quebrou o galho e começou a bater, bater, bater. E nenhuma delas conseguiu picá-lo.

– Huuum! Esperto! Desce, meu neto! Desceu?
– Um um.
– Desce, meu neto!
– Um um.
– Desce senão eu mando os marimbondos!

E quando ela falou, veio um enxame enorme de marimbondos e começou a ferroar o menino. Ele quebrou o galho, começou a bater, mas não teve jeito, não tinha saída, só a água. Ele pulou. E, quando pulou, ela rapidamente jogou a rede e puxou, e agora pegou.

– Hummmm! Esse eu vou comer assado!

Colocou o menino na canoa e foi para casa. Quando chegou, deixou aquela rede embrulhada num cantinho no terreiro. Como não tinha lenha, ela foi para o mato buscar. Correu para lá. Ceiuci tinha uma filha também, mais ou menos deste tamanho, e ela falou:

– Hmm, estranho! Quando minha mãe chega, ela fala o que trouxe, mas hoje não falou nada! Será? Vou olhar só um pouquinho.

Não conseguiu ver. Abriu mais um pouco. Não conseguiu. Menina é sempre mais curiosa que menino, não é? Não se aguentou, abriu aquilo de uma vez, e o menino deu um salto e falou:

– Por favor, me salve que Ceiuci quer me comer!
– Ah, não posso salvar, não. Porque, se eu salvar, tu vai me comer!

Mas a menina não resistiu. Ele era bonitão.

– Olha, faz o seguinte: tá vendo aquela árvore ali? Corre pra lá. Corre pra lá e me espera.

E assim o menino fez. Ceiuci chegou do mato, com a lenha, fez o mutasil, fez o fogo. E a menina, que é sempre mais esperta que menino, tinha pegado um pilão, enrolou com aquela rede, colocou cera de abelha e pronto, parecia com o que a mãe tinha deixado. Ceiuci não conseguiu ver isso e colocou em cima do mutasil, e aquele fogo começou a aquecer bem e a cera começou a derreter.

– Hmmmm tá uma delícia! Vou esperar ficar bem mais assado.

O fogo começou a derreter de vez e de repente, bum, o pilão que tava sendo queimado explodiu no fogo. Ceiuci não pensou duas vezes:

– O que foi, mãe? O que foi?
– Cadê o menino que estava aqui?
– Ah, não sei…
– Não sabe? Só moramos eu e você aqui. Cadê o menino que estava aqui? Conte!
– Ah, mãe, eu fui só olhar e ele fugiu!
– Fugiu pra onde?
– Pra lá.

Ceiuci quando ficava irritada tinha um canto que era assim: Cã! Cã! Cã!. E ela saiu naquela direção. Só que o menino não estava lá. Onde o menino estava? A menina correu até ele e falou:

– Olha, vamos correr porque minha mãe vai já nos descobrir e vai comer nós dois!

E começaram a correr, correr, correr. Pegaram umas palhas, fizeram um cesto, jogavam e virava um bicho. Daqui a pouco vinha a Ceiuci, eles começavam a ouvir o canto dela: Cã! Cã! Cã! Por onde eles corriam, jogavam esse cesto e Ceiuci, Cã!, comia tudo de uma vez. Só que a menina não aguentou tanto e cansou.

– Ah ah ah, vai você porque eu não consigo.

E o menino continuou, correu, correu, correu, e Ceiuci na cola, Cã! Cã! Cã! Uma hora ele viu um bando de macacos comendo mel. 

– Por favor, me ajudem, que Ceiuci!...
– Eu não quero papo com Ceiuci, não.
– Por favor, me salva! Ceiuci estava se aproximando.

Se Ceiuci pegasse o menino, e aquele bando de macaco conversando com o menino, não ia sobrar nenhum deles. Mas macaco é esperto:

– Sobe, sobe!

Subiu, colocou nele o cesto de mel, e aí Ceiuci passou, Cã! Cã! Cã!, e foi embora. E o macaco disse: “Vai embora que eu não quero papo com Ceiuci, não”. E o menino começou a correr, correr, correr, correr, e em pouco tempo ele ouviu de novo, Cã! Cã! Cã! Cã! E então ele olhou e viu um buraco no chão, não pensou duas vezes, pum, pra dentro do buraco. Quando ele se deu conta, tinha uma Surucucu de fogo.

– Por favor, Surucucu, me salve! Porque se Ceiuci me pegar…
– Tá bom, fica naquele cantinho ali.

Ele foi pra lá, e dali a pouco, quem chega? Surucucu macho.

– E aí?
– Ó, a comida tá pronta, a bebida tá pronta, mas a sobremesa… Hum! Tá uma delícia!

Quando o menino percebeu isso, teve que arranjar um jeito de fugir. Depois do jantar, surucucu macho e surucucu fêmea foram surucucar um pouco e o menino aproveitou e fugiu. Ao sair, ele viu Acauã, que estava passando, e Acauã falou: me salvou por quê? As cobras caíram em quantos buracos? Acauã come cobra, então o menino desatou a correr, correr, correr, e dali a pouco ele começou a ouvir de novo: Cã! Cã! Cã! Longe e se aproximando, Cã! Cã! Cã! E quando ele olhou, na beira de um lago tinha um pássaro grande pescando. Quem é? Tuiuiu. Tinha que encher o seu cesto, e Tuiuiu na maior lerdeza, bem calma, pegava o peixe, colocava no cesto. E o menino apressado chegava, Tuiuiu, me salva! Porque se Ceiuci me pegar...

– Não posso, não. Tenho que encher esse negócio aqui.

E pegava o peixe, pegava, e colocava no cesto, e aquele canto, Cã! Cã Cã!! Quando Ceiuci estava muito próxima, Tuiuiu tinha pegado seu último peixe, colocava no seu atorá e falou: “Sobe aí”. E o menino subiu, e Tuiuiu começou a voar, voar, voar, cada mais alto, cada vez mais longe, cada vez mais alto e mais longe! E voou por muito tempo. Quando ele olhou, depois de muito tempo de vôo, viu uma clareira no chão perto de um rio e falou: “Vou te deixar aqui. Desce e me deixa”. O menino agradeceu e Tuiuiu seguiu seu caminho. Ele, então, viu uma fumaça saindo da mata, e foi lá para saber o que era. Ao chegar, ele viu uma casinha e uma velha com uma vara, batendo numa cotia.

– Sai, cotia! Sai, cotia! Cai, cotia!

A cotia comia mandioca, a macaxeira que ela tinha pegado, e, quando ela viu aquele menino, falou:
– Oi, moço! Tudo bem?
Ele não respondeu nada.
– O moço tá com sede?

Ela então levou água pra ele, e ele tomou, e mais uma vez. E ela perguntou: “Tá com fome, moço?”. Então eles foram até a casa, ela deu comida pra ele, e ele comeu novamente. Ela olhou pra ele e falou assim:

– Conte sua história, moço!
E ele contou a história:
– Olha, um dia eu saí pra pescar, quando eu morava com a minha mãe. Um dia eu saí pra pescar, e Ceiuci me pegou, me levou pra casa dela, queria me comer assado, mas aí a filha dela me salvou, e aí começamos a correr, e a filha cansou, e eu continuei, e eu vi um bando de macacos, que me ajudaram. Mas quando eu saí, Ceiuci estava muito próxima, e eu vejo um buraco no chão e alguém está lá, e eu vejo, Surucucu de fogo, mas Surucucu de fogo também queria me comer! Eu fugi e a Acauã me ajudou. Continuei a correr, correr, correr, correr, e aí eu encontrei Tuiuiu caçando, e ela me trouxe até aqui. Ela olha pra ele, eles começam a se tocar, e então ela fala assim: “Olha, um dia, o meu filho foi pescar e nunca mais voltou”. Cabou. [muitos aplausos]

Essa é uma das histórias de que eu mais gosto. Ceiuci é meio gulosa e ela retrata muito o que costumamos fazer. A gente come, come, come, foge das coisas, e tem tantos obstáculos, e vamos ficando velhos nessa corrida, às vezes não conseguimos chegar aonde a gente imagina. Obrigado.

Daniel Munduruku: Obrigado, Cristino que é do povo Wapichana, de Roraima. Um grande companheiro nos caminhos da literatura e que tem produzido lindas obras literárias para as crianças brasileiras... No nosso espírito, na nossa alma. E é aí que a gente se educa. Conseguimos perceber o nosso lugar no mundo. As histórias indígenas, sobretudo, mas as histórias em geral, têm um componente que a gente esquece: normalmente elas são cíclicas ou circulares. O pensamento indígena é um pensamento circular. O que significa isso? Significa que a gente pensa em forma de espiral. Espiral é aquela mola que dá uma volta e se encontra novamente no mesmo ponto. A espiral como pensamento é essa volta ao passado necessária – é importante que a gente faça esse caminho de buscar no passado os sentidos da nossa existência para podermos dar valor ao momento em que a gente vive. O povo indígena não nega a sua memória, não nega a sua história. O tempo inteiro ele busca no passado os sentidos para atualizar sua existência no presente. Então, quando pensamos nas populações indígenas vivendo nos dias de hoje, temos que considerar que elas estão fazendo uma atualização da própria história. Vocês sabem que a cultura é algo dinâmico. Não existe cultura parada no tempo. Aliás, existe sim, é a cultura morta. Cultura parada no tempo é a cultura de museu, já que estamos em um… É uma história que foi congelada por algum motivo e está naquele lugar, porém não existe mais. Porque a cultura, por si só, é muito dinâmica. Ela precisa se atualizar para ser, para continuar existindo. Quando pensamos a cultura índigena como uma cultura escrava do passado, congelamos essa cultura. Quando atrelamos o tal do índio a uma imagem do passado, não consideramos que a cultura se movimenta. E essa cultura precisa se movimentar para continuar a existir. Então, quando as populações indígenas dominam os mecanismos, os instrumentos que hoje a sociedade ocidental desenvolveu, eles não fazem outra coisa a não ser atualizar a sua memória. Quando usamos a literatura como instrumento, o vídeo, o violão, que não é um instrumento tradicional indígena, mas que usamos com competência para sofisticar a nossa própria experiência de humanidade, estamos sendo muito mais inteligentes do que as pessoas pensam. Porque é muito interessante pensar que os indígenas se aproveitam mais do conhecimento ocidental do que o Ocidente se aproveita do conhecimento indígena. Ora, quem será mais inteligente nessa história? O indígena faz muito mais esforço para entender o Brasil, do que o Brasil para entender os indígenas. E nisso quem perde é o próprio Brasil, porque cada vez mais os indígenas se articulam para dominar esses instrumentos a fim de manter sua tradição. Falar em tradição faz parecer que perseguimos coisas do passado. Tradição é metodologia. Usamos a tradição como forma de manter nosso padrão educativo. Nós nos atualizamos, mas sem largar a tradição. Então, no fundo, quando falo para vocês, com um instrumento que não é meu, uma língua que não é minha, num lugar que não é meu, meu intuito é trazer a mensagem de um povo ancestral, um povo tradicional. Com isso eu atualizo a memória, não é? Quer dizer, é uma forma de se comunicar com a sociedade brasileira. Aliás, por falar em comunicação, quero lembrar que eu tenho um blog: danielmunduruku.blogspot.com.br. O nome desse blog é Mundurukando. Mundurukando é uma palavra que eu inventei, é uma brincadeira com a palavra filosofando, naturalmente. Quando um ocidental pensa, a gente diz que ele está a filosofar. E o Munduruku, quando pensa, o que está fazendo? Mundurukando. O blog é um pouco uma brincadeira com essa palavra. Nele eu coloco textos e uma porção de dicas. Nós também criamos um canal no YouTube chamado UkaTV. Uka é casa em Munduruku. Estamos fazendo experiências nesse canal, postando alguns vídeos, algumas dicas de leitura. Uka é o nome do instituto que eu criei, instituto Uka, do qual o Cristino também faz parte. O objetivo desse instituto é difundir a literatura indígena e sugerir materiais de apoio sobre a cultura indígena para professores e tal. Então, vão lá, se inscrevam, ajudem a gente, vai? Vão lá, ajudem a gente a ficar rico. [risos]

Estamos buscando essa comunicação com a sociedade brasileira por meio desses instrumentos, e não vemos nenhum mal nisso. As pessoas usam nossos colares e a gente usa o YouTube. É uma troca justa. Antigamente eles nos davam espelhos, hoje em dia nem iPhone a gente não aceita. Essa relação está melhorando, ficando mais justa. Bom, vamos abrir para questões? O que nos mantém como um país do futuro? São os povos indígenas que garantem o verde da nossa terra, da nossa bandeira. São as populações indígenas que se sacrificam para que o Brasil não perca essa configuração tão bonita que tem. Isso é fato. Nos estudos ambientais que são feitos, onde tem a presença indígena, está verde; onde não tem, tem gado. Eu ia dizer que está cagado, mas não... Tem gado, tem cana de açúcar, tem soja, e é esse pessoal que destrói o nosso patrimônio natural, que joga o Brasil contra os indígenas, não é? E o cidadão acaba vendo tudo isso acontecer, ficamos dando milho aos pombos e aceitando isso de uma maneira muito pacífica. A gente não faz panelaço ou protesto contra isso. Porque na nossa cabeça – e realmente acho isso – na nossa cabeça temos a impressão de que essas pessoas estão fazendo bem para o Brasil. Porque nós podemos consumir o Friboi, podemos consumir combustível ou ter acesso aos bens industrializados. E esquecemos que não são os bens que a gente consome que nos tornam humanos. É o presente que a gente vive. E esse presente está muito poluído. Os nossos rios estão mortos. Vide o Tietê ou o que fizeram em Minas Gerais com o rio Doce. Vide o que vão fazer com a Amazônia, construindo hidrelétricas. Vide tanta sujeira no sistema político, que de fato deu as costas para o povo. E o nosso povo continua a aplaudir um pouco tudo isso. Então eu vejo assim: é claro que os povos indígenas vão passar por muitas mudanças nos próximos anos porque, apesar de tudo o que podemos fazer, não vamos conseguir parar nada disso. O máximo que a gente vai conseguir é dizer: nós estamos aqui, vivos, e queremos continuar vivos. Vamos tentar impor um jeito de permanecer vivos, apesar do nosso território ser cada vez menor. Nós enfrentamos uma dificuldade muito grande.

Claro que o poder político brasileiro não levou em consideração todo o esforço que os indígenas fizeram, desde a democratização. Por incrível que pareça, quem mais demarcou terra no Brasil foi o Fernando Collor de Mello. É claro que ele fez isso porque também foi instigado pela opinião pública internacional. Mas, de lá para cá, todas as políticas públicas para as populações indígenas foram um fiasco. O PT foi ruim também, apesar de contar com outros elementos laterais. Por exemplo, a política cultural para os povos indígenas foi muito boa. Mas isso nada tem a ver com a demarcação de terra, porque a demarcação de terra resolveria o problema, e isso ninguém consegue resolver. Isso é tão impossível de resolver que a gente não consegue emplacar um presidente indígena para a Funai. Vocês viram quem foi indicado? Um militar. Para comandar a Funai! Adivinha o que vai acontecer? Não é possível emplacar um indígena dentro da Funai porque esse indígena vai ter que mudar muita coisa. E ninguém quer mudar, porque está mexendo com um patrimônio riquíssimo, e não estamos falando só de um patrimônio mineral, mas de biodiversidade rica, de conhecimento ancestral em produtos farmacêuticos, alimentícios e higiênicos. E as pessoas entregaram isso nas mãos desses infelizes indígenas, que não sabem o que fazer... Essa ironia é para pensar: o que está no Congresso hoje? A discussão é apenas em torno da exploração mineral em terra indígena. É o que as pessoas querem. O que está na pauta? Demarcação de território indígena. Faz pouco tempo eu estive em uma reunião aqui em São Paulo, no Fórum dos Produtores Rurais Brasileiros. Uma das questões era a demarcação de terras indígenas, o conflito interno em terra indígena. O que eles querem? Eles querem que se pague pelas terras em que os indígenas vivem para eles poderem sair. Uma terra que foi invadida por eles. Agora, nós brasileiros vamos pagar indenização para eles sairem de uma terra que é nossa. Porque vocês sabem que terra indígena não é do indígena. A terra indígena é patrimônio da União, portanto é do brasileiro. Todos nós brasileiros. Os indígenas são apenas os usuários dessa terra, e a Constituição garante isso. Então, quando a gente pensa nessa questão maior e o que está envolvido, fica evidente que não vamos conseguir emplacar um presidente indígena na Funai. É claro que não vamos conseguir demarcar as mais de quinhentas terras indígenas que estão em processo de demarcação. Isso representa uma porcentagem ínfima dentro do Brasil. Porque alguns fazendeiros têm mais terra do que o povo inteiro. Eles podem ter terra, os indígenas não. Isso é um assunto muito, muito delicado. E é a principal pauta do próprio movimento indígena. Vou usar uma frase de efeito, que é usada nessas campanhas: índio é terra, não dá para separar. E não é porque índio é terra que ele quer terra. Significa que ele é terra. O espírito dele é a terra. Então, ele deseja ter grande território simplesmente porque quer ser dono da terra, mas porque ele se sente parte da terra. Aquele é um lugar sagrado para ele, onde seus mortos foram enterrados, onde se tem uma relação ritual com a terra, que é a mãe terra do texto que eu li para vocês, é a nossa mãe, nossa mãe acolhedora, que gera, que nos recebe. Nossa relação com a terra não é de produção, de riqueza. Mas essa é outra conversa, que podemos desenvolver melhor em outra ocasião. Mas diante das questões que vocês colocaram, eu diria: há muito o que aprender com as populações indígenas. Precisamos apenas estar, não só com os ouvidos abertos, mas com o alto da cabeça e com o coração da gente aberto; precisamos saber qual é o indígena que está dentro da gente. E se for de fato essa coisa um tanto romântica, não se preocupem, os românticos também amam, não é tão ruim assim ser romântico. Mas obviamente é legal ter uma maior compreensão. Existe um mistério por trás do ser indígena. Algo que é muito difícil de ser traduzido em palavras, é preciso viver um pouco para sentir como é essa experiência de ser indígena. Agora, o que eu guardo disso, o que eu levo disso na minha contemporaneidade, no fato de estar aqui hoje com vocês, qual é o pedaço dessa história que está dentro de mim? Tudo, pessoal, tudo. Eu simplesmente não me coloco fora do mundo. Eu estou no mundo. Sou desse mundo, não de outro. Mas também não sou aquele que vai descer do disco voador, na canção do Caetano. Eu sou um ser desse mundo. E procuro expressar isso no que falo, no que vivo, no jeito como vivo, aceitando minhas fraquezas e minhas forças, no caso, essa ideia de pertencimento. Eu me sinto um brasileiro completo e procuro viver minha brasilidade, saber que sou um cidadão Munduruku que vive nesse país chamado Brasil. Portanto, tenho meus rituais? Tenho, sim. De vez em quando eu os faço, vou pra minha comunidade para lembrar que tenho um lugar para voltar. Procuro alimentar meus sonhos, não sonhos de futuro, mas sonho mesmo, dormir e sonhar, que é como meus avós me ensinaram a me comunicar com minha ancestralidade. Tento fazer com que isso não se perca de mim. Manter a minha calma, já é uma grande dificuldade, mas isso também faz parte do que aprendi, quando conheci meu avô. Aliás, para terminar minha participação, eu tive um avô maravilhoso. Inclusive escrevi um livro em homenagem a ele, Meu avô Apolinário – um mergulho no rio de minha memória, em que eu conto um pouco minha trajetória. Quando eu era criança, não gostava de ser chamado de índio simplesmente porque essa palavra trazia uma carga de preconceito. Mas meu avô falava duas coisas que para mim sempre foram muito importantes. Uma delas alimenta minha passagem nesse mundo e é referente ao tempo. Meu avô dizia assim: se o momento atual não fosse bom, não se chamaria presente. E para o povo Munduruku, o presente é isso. Esse é meu presente, vocês são meu presente, e eu espero ser o presente de vocês. Por isso eu digo que o hoje é uma roupa que foi feita sob medida para vivermos o agora. Amanhã a gente troca, quando o amanhã virar hoje. E esse avô nos lembrava disso, que esse é o nosso presente, e temos de vivê-lo como tal. E a outra coisa que ele dizia é com relação à felicidade. Meu avô sempre lembrava que precisavámos saber duas coisas para sermos felizes. A primeira: nunca devemos nos preocupar com coisas pequenas. E a segunda: todas as coisas são pequenas. É mole? O velhinho é danado. Todas as coisas são pequenas. Esse é um ensinamento que martela na minha cabeça. Sempre que eu encontro os conflitos que a vida me traz, preciso lembrar que somos parte, não somos donos de nada. Somos parte desse universo, e é assim que eu quero ser lembrado, como parte, poeira desse universo. Muito obrigado. [aplausos]

Cristino Wapichana: Obrigado, fico muito feliz em poder participar e contribuir de alguma forma. Eu moro aqui em São Paulo, perto do Pico do Jaraguá, a gente pode trocar contatos. Eu também afino pianos, ninguém falou sobre afinar pianos nem sobre profissão.