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Faz escuro mas eu canto
07 Mar 2020
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O projeto curatorial da 34ª Bienal de São Paulo pretende ampliar a mostra, multiplicando as oportunidades de encontro com a arte e reivindicando, ao mesmo tempo, o direito à opacidade tanto das expressões artísticas quanto das identidades de sujeitos e grupos sociais

O ponto de partida do projeto curatorial da 34ª Bienal de São Paulo foi o desejo de desdobrar a mostra, ativar cada momento de sua construção e aguçar a vitalidade de uma exposição desta escala. Buscando dialogar com os públicos, tão amplos e tão distintos, que visitam a Bienal há décadas, propusemos expandir esta edição no espaço e no tempo. Inaugurada oficialmente com uma performance e uma exposição individual no dia 8 de fevereiro de 2020, a Bienal continuaria em eventos realizados em parceria com diversas instituições culturais da cidade e se encerraria ao final de sua grande mostra coletiva neste pavilhão, em dezembro do mesmo ano. No novo cenário imposto pela pandemia de Covid-19, vários aspectos dessa coreografia foram redesenhados, exposições e performances previstas foram canceladas e a mostra Vento tomou corpo, perpassada pelas distâncias e ausências que ainda nos assolam. Um longo ano mais tarde, seguimos acreditando no potencial de uma mostra concebida para multiplicar as oportunidades de encontro entre obras e pessoas, em que suas singularidades possam se cruzar e se transformar. Certamente, esta Bienal não é a mesma que se veria um ano atrás. Algumas obras se verão mais claras, outras mais opacas; algumas mensagens soarão como gritos, outras chegarão como ecos. Não precisamos entender tudo, nem nos entender todos; trata-se de falar nossa língua sabendo que há coisas que outros idiomas nomeiam e nós não sabemos expressar.

Na busca por uma linguagem para delinear os campos de força criados pelo encontro de obras produzidas em lugares e momentos distintos, propusemos alguns objetos, e suas histórias, como enunciados: um sino que soou em momentos diversos de uma história que se repete; as imagens do homem mais retratado num tempo em que quase não havia retratos; os bordados que outro homem não teria feito se não fosse às escondidas; cartas que, para chegar a uma criança, tiveram que atravessar as grades da cadeia e os olhos da censura; um conjunto de objetos que sobreviveram de maneiras diferentes ao mesmo incêndio... Esses enunciados pontuam a exposição, sugerem o tom no qual podem vibrar as obras ao seu redor, aglutinando e tornando tangíveis as preocupações e as reflexões da curadoria. Funcionam, nesse sentido, como o diapasão que ajuda a afinar um instrumento musical, ou a começar um canto. Na curadoria de uma exposição também é almejado algo parecido com uma afinação, um ajuste não isento de erros, acidentes e desvios, que o tempo expandido da 34ª Bienal nos permitiu.

Funcionando como o primeiro desses enunciados, mais que como um tema, o título da 34ª Bienal, Faz escuro mas eu canto, é um verso do poeta amazonense Thiago de Mello, publicado em 1965. Por meio desse verso, reconhecemos a urgência dos problemas que desafiam a vida no mundo atual, enquanto reivindicamos a necessidade da arte como um campo de resistência, ruptura e transformação. Desde que encontramos esse verso, o breu que nos cerca foi se adensando: dos incêndios na Amazônia que escureceram o dia aos lutos e reclusões gerados pela pandemia, além das crises políticas, sociais, ambientais e econômicas que estavam em curso e ora se aprofundam. Ao longo desses meses de trabalho, rodeados por colapsos de toda ordem, nos perguntamos uma e outra vez quais formas de arte e de presença no mundo são agora possíveis e necessárias. Em tempos escuros, quais são os cantos que não podemos seguir sem ouvir, e sem cantar?

Jacopo Crivelli Visconti, Paulo Miyada, Carla Zaccagnini, Francesco Stocchi, Ruth Estévez