A definição de "artista-etc." de Ricardo Basbaum – artista participante da 30ª Bienal – é um ponto de partida interessante para entender o seu trabalho e o seu papel como artista:
Hoje, a maioria dos artistas (digo, aqueles interessantes–) poderia ser considerada como 'artistas-multimídia', embora, por 'razões de discurso', estes sejam referidos somente como 'artistas' pela mídia e literatura especializadas. - Ricardo Basbaum
"Quando um artista é artista em tempo integral, nós o chamaremos de 'artista-artista'; quando o artista questiona a natureza e a função de seu papel como artista, escreveremos 'artista-etc.' (de modo que poderemos imaginar diversas categorias: artista-curador, artista-escritor, artista-ativista, artista-produtor, artista-agenciador, artista-teórico, artista-terapeuta, artista-professor, artista-químico etc.); [...] Vejo o 'artista-etc.' como um desenvolvimento e extensão do 'artista-multimídia' que emergiu em meados dos anos 1970, combinando o 'artista-intermídia' fluxus com o 'artista-conceitual' – hoje, a maioria dos artistas (digo, aqueles interessantes–) poderia ser considerada como 'artistas-multimídia', embora, por 'razões de discurso', estes sejam referidos somente como 'artistas' pela mídia e literatura especializadas. 'Artista' é um termo cujo sentido se sobre-compõe em múltiplas camadas (o mesmo se passa com 'arte' e demais palavras relacionadas, tais como 'pintura', 'desenho', 'objeto'), isto é, ainda que seja escrito sempre da mesma maneira, possui diversos significados ao mesmo tempo. Sua multiplicidade, entretanto, é invariavelmente reduzida apenas a um sentido dominante e único (com a óbvia colaboração de uma maioria de leitores conformados e conformistas). Logo, é sempre necessário operar distinções de vocabulário. O 'artista-etc.' traz ainda para o primeiro plano conexões entre arte&vida (o 'an-artista' de Kaprow) e arte&comunidades, abrindo caminho para a rica e curiosa mistura entre singularidade e acaso, diferenças culturais e sociais, e o pensamento. [...] Amo os artistas-etc. Talvez porque me considere um deles, e não é correto odiar a mim mesmo". - Ricardo Basbaum, I love etc-artists. Texto originalmente publicado em inglês, parte do projeto The Next Documenta Should Be Curated by an Artist, traduzido para o português em Políticas institucionais, práticas curatoriais, organizado por Rodrigo Moura (Belo Horizonte, Museu de Arte da Pampulha, 2005). Dossiê do artista.
Em meados da década de 1980, Ricardo Basbaum espalhou pelo campus da Unicamp uma marca com a imagem de um olho, reduzido aos traços mais simples. O Olho de Basbaum era aplicado em diversos objetos e também era vendido como adesivo para que as pessoas pudessem colá-lo onde quisessem.
O artista Chico Chaves apropriou-se do Olho e colou-o na estátua da Justiça em Brasília. Basbaum comenta o episódio no jornal A Gazeta, de 31 de janeiro de 1993: "Ele foi preso, saiu nos jornais, criou um acontecimento na imprensa. Eu fiquei muito contente. Acho que a marca Olho serve para isso. O que eu faço é dar indicações. O fato de ela estar disponível, à venda como um adesivo, indica que as pessoas podem usá-la para suas próprias estratégias".
Em 1989, Basbaum sentiu a necessidade de criar outra marca que não fosse visual, mas verbal. Da marca visual do Olho partiu então para a sigla: NBP de Novas Bases para a Personalidade. "O NBP lida com a ideia do subliminar. A ideia é injetar na memória do espectador para que ele consuma o trabalho, não comprando exatamente, mas olhando e se relacionando com o objeto. Aí ele sai da galeria carregando o trabalho na mente. Esta seria a ideia da memória artificial. Como se um chip de arte fosse injetado na memória do espectador", diz Basbaum em A Gazeta de 31 de janeiro de 1993.
NBP é a base conceitual a partir da qual Basbaum desenvolve o seu trabalho nas últimas décadas. A sigla foi associada à uma forma, que, assim como o Olho, foi desenhada para ser facilmente memorizada:
Ao longo do tempo, a forma específica do NBP foi construída através de diferentes técnicas e materiais, sempre desenvolvidos a partir das "ideias-vetores" principais do projeto: imaterialidade do corpo, materialidade do pensamento e logos instantâneo.
Basbaum participou da 25ª Bienal (2002), com a obra Transatravessamento, uma instalação NBP definida assim pelo curador do núcleo brasileiro da mostra, Agnaldo Farias: "[...] um conjunto longitudinal de ambientes confeccionados com paredes aramadas e separados uns dos outros por pequenas sextavadas, que o visitante deverá transpor para aceder a cada um deles. Basbaum atualiza a lição de Lygia Clark e Helio Oiticica, que entendiam o espectador como um ser ativo, no limite, um coautor, alguém capaz de colocar a obra em movimento. Sua diferença básica reside na ênfase que dá ao espectador como aquele que circula por entre as coisas, atirando-as na parede, detendo-se para ler textos nela afixados, curvando-se para esgueirar-se por entradas estreitas, deitando-se para simplesmente deixarem-se estar" (Agnaldo Farias, catálogo Brasil da 25ª Bienal, p. 37).
Qualquer trabalho artístico está ligado à transformação. Talvez porque eu venha dos anos oitenta, não assino abaixo de nenhuma utopia, não acredito que vamos chegar a um estado perfeito... sempre temos que lidar com essa mistura, um tipo de negociação. - Ricardo Basbaum
Você gostaria de participar de uma experiência artística? é o work-in-progress de Basbaum criado a partir do NBP, no qual um objeto de metal viaja pelo mundo desde 1994. Cada pessoa que recebe o objeto decide o que fazer com ele e documenta o processo como parte da experiência artística. Com a participação na Documenta 12 (2007), o projeto ganhou uma mudança significativa em sua dimensão: do único objeto que circulava nos primeiros anos do projeto foram produzidos vinte iguais, que continuam viajando pelo mundo desde então: dez pelo Brasil e América Latina, nove na Europa e um na África. Nesse tempo (quase vinte anos!) já foram mais de 140 experiências, das mais diversas: já teve quem destruiu o objeto original e mandou uma réplica de volta ao artista, mudou a sua forma, usou-o como um tanque para lavar roupas, doou-o a um museu, deixou-o numa cachoeira? levantando várias questões da arte contemporânea, tais como autenticidade, apropriação, colecionismo, meio ambiente? Todas as experiências realizadas até agora podem ser vistas no site do projeto.
A forma e a sigla NBP tem sido trabalhadas pelo artista em vários outros contextos, dando origem a diagramas, textos, intervenções, instalações... Em re-projecting (Utrecht), projeto realizado em maio de 2008 com o centro de arte Casco, em Utrecht, Holanda, Basbaum aplicou a forma NBP no mapa da cidade, determinando nove locações para projetos colaborativos.
Em cada ponto foram realizadas diferentes atividades com artistas e grupos de artistas convidados, pessoas das comunidades locais, pensadores, filósofos, curadores... As experiências foram as mais diversas: das coreografias, jogos e exercícios Me & You organizadas pelo artista em um playground no subúrbio da cidade, ao debate sobre "esfera pública" com o escritor e curador Simon Sheikh num ambiente mais que privado (a sala da casa de uma moradora da cidade), terminando, como não, com um belo samba e churrasco num parque esportivo na (rua) Rio de Janeirodreef.
"Qualquer trabalho artístico almeja algum tipo de transformação. Qualquer trabalho artístico esta ligado à transformação. Talvez porque eu venha dos anos oitenta, eu não assino abaixo de nenhuma utopia, eu não acredito que vamos chegar a um estado perfeito... sempre temos que lidar com essa mistura, um tipo de negociação, algum tipo de situação paradóxica, nunca teremos isso completamente resolvido[... ] No final da década de 1950, Helio Oiticica e Lygia Clark podiam acreditar num tipo de transformação universal. Mas aqui eu pergunto: que transformação, como, quando? Meu trabalho tem várias ambigüidades... é muito mais um tipo de provocação. A transformação vai ser o fruto de seu próprio desejo e esforço [...] Eu acho que o meu trabalho investe no envolvimento, eu tenho que envolver o outro em todos os meus projetos: mas esse envolvimento só acontece se você quiser. Você tem que se engajar num tipo de produção, ou então nada acontece". - Ricardo Basbaum (tradução para o Português da entrevista à dissertação de mestrado supracitada)
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Fernanda Curi é Arquiteta e Urbanista, Mestre em Museologia. Atualmente desenvolve a pesquisa "Parque Ibirapuera - 60 anos (1954-2014) Símbolo urbano, metáfora da urbanidade" no programa de Pós Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAU USP e trabalha como Pesquisadora no Arquivo Wanda Svevo da Fundação Bienal de São Paulo.