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Dossiê Flávio de Carvalho
29 Mai 2013
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Pesquisador Thiago Gil relembra uma das figuras mais polêmicas e questionadoras do modernismo no Brasil

Nesse post às vésperas de mais um feriado de Corpus Christi, vale uma lembrança de Flávio de Carvalho (1899-1973), que, ao lado de Oswald de Andrade, foi sem dúvida uma das figuras mais polêmicas e questionadoras do modernismo no Brasil.

Em 1983, a 17ª Bienal de São Paulo dedicou, em seu núcleo histórico, uma sala especial ao artista plástico, engenheiro, arquiteto e escritor Flávio de Carvalho. Com curadoria de Walter Zanini e Rui Moreira Leite, a mostra prestava homenagem póstuma ao artista, passados dez anos de sua morte.

Junto com um amplo conjunto de obras, entre desenhos, aquarelas e pinturas, foi exibida também uma seleção de documentos. O intuito era, nas palavras de Zanini, "tornar possível uma melhor compreensão dos propósitos interdisciplinares do artista e do intelectual, instigando o interesse para uma obra de grande complexidade intelectual." (ZANINI, Walter. "Introdução a Flávio de Carvalho" In: Exposição Flávio de Carvalho. 17ª Bienal de São Paulo. Cur. Walter Zanini e Rui Moreira Leite. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1983, p. 3)

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Cartaz da Sala Especial de Flávio de Carvalho na 17ª Bienal (1983)

As diversas atividades exercidas por Carvalho incluem: projetos e realizações como arquiteto e engenheiro; produção teatral e coreográfica; trabalhos de ilustração; organização de exposições, com destaque para as três edições do Salão de Maio, mostra internacional realizada em São Paulo, de 1937 a 1939; publicação de livros, ensaios e artigos sobre temas variados, como psicologia, moda e antropologia.

Além da diversidade e do caráter multidisciplinar de suas atividades, a documentação reunida na exposição ressaltava ainda outro traço marcante da atuação do intelectual-artista Flávio de Carvalho: suas intervenções públicas.

Um exemplo: poucos anos depois de retornar ao país, após concluir estudos na França e Inglaterra, Carvalho inscreve-se no concurso para as fachadas do Palácio do Governo do Estado de São Paulo, realizado em 1927. Seu projeto alcança ampla repercussão na imprensa paulista, não apenas pela estética moderna, mas também pela concepção inusitada. Segundo Rui Moreira Leite, o projeto "faz do palácio uma verdadeira fortaleza à prova de golpes, com baterias antiaéreas, base de aviação e holofotes". (Idem, p. 47) Assinado com o pseudônimo "Efficacia", a concepção "atordoante" da proposta foi defendida pelo artista-arquiteto em artigos exaltados, publicados no jornal Diário da Noite.

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Flávio de Carvalho, Projeto para o Palácio do Governo do Estado de São Paulo, 1927 - extraído do catálogo especial de Flávio de Carvalho da 17ª Bienal (1983)

Dessa forma, já a primeira intervenção pública do artista assumia uma dimensão polêmica. E a segunda não deixaria por menos. Ela ocorre justamente no feriado de Corpus Christi do ano de 1931, em São Paulo.

"Era dia de Corpus Christi; um sol agradável banhava a cidade, havia um ar festivo por toda parte; mulheres, homens e crianças moviam cores berrantes de tecido ordinário; negras velhas de óculos e batina ou qualquer coisa de parecido; grupos de homens de cor segurando estandartes, velas; anjinhos sujos enfeitados com estrelas de papel dourado mal pregadas; mulheres gordas vestidas de cor-de-rosa, cabelo bem emplastado olhavam o mundo em redor com infinita piedade. Uma sucessão de gaze amarela, de tecidos pretos, veludos, padres rendados, crianças engomadas, pintadas e sujas de pó de arroz, olhavam com espanto; freiras gordas e pálidas se mexiam como besouros enormes, e o tráfego parado. Olhei para a catedral e vi no topo da escadaria homens beatos que arranjavam com cuidado sexual ramos de folhas, flores, panos dourados e coisas em torno de um altar. A luz viva do sol destacava o pó de arroz roxo das negras e os enfeites sujos das fachadas." (CARVALHO, Flávio de. Experiência n. 2: realizada sobre uma procissão de Corpus-Christi. Uma possível teoria e uma experiência. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nau, 2001, p. 15)

É desse modo que Flávio de Carvalho descreve o cenário que desperta, em sua mente inquieta, a ideia de realizar uma experiência, com o objetivo de colher evidências para um estudo de psicologia das multidões que vinha desenvolvendo. Ele toma um bonde elétrico para buscar um utensílio fundamental para o sucesso de seu plano e, minutos depois, está de volta ao centro da cidade, munido de um chapéu de veludo verde. Ali, próximo à catedral da Sé, os personagens descritos acima se reuniam para o cortejo da procissão de Corpus Christi.

A experiência e seus resultados são apresentados no livro Experiência n. 2: realizada sobre uma procissão de Corpus-Christi, publicado no mesmo ano de 1931, e que integrou a documentação exposta na sala especial da 17ª Bienal.

Nenhum resumo poderia dar conta da riqueza literária com que Carvalho narra os episódios por que passou naquela tarde de Corpus Christi. Mas uma nota, publicada no jornal O Estado de S. Paulo, na terça-feira seguinte ao feriado (9 de junho de 1931) nos dá uma ideia do que foi a Experiência nº 2:

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"Domingo, às 15 horas quando desfilava pelas ruas do centro da cidade, a procissão de 'Corpus Christi', um rapaz muito bem posto, que se achava na esquina da rua Direita e praça do Patriarca, não se descobriu, conservando ostensivamente seu chapéu na cabeça. 

Os crentes, que acompanhavam o cortejo, revoltaram-se com essa atitude e exigiram em altos brados que ele se descobrisse. Ele, no entanto, sorrindo para a turba, não tirou o chapéu, embora o clamor da multidão já se tivesse transformado em franca ameaça. Foi então que inúmeros populares tentaram linchá-lo, investindo contra ele. O rapaz pôs-se em fuga, ocultando-se na leiteria Campo Belo, situada à rua de São Bento, até onde foi perseguido pelos mais exaltados. 

O subdelegado de plantão na Polícia Central compareceu ao local, onde deu garantias ao moço, protegendo-o contra a ira do povo. 

Na Polícia Central, para onde foi conduzido, declarou a vítima da exaltação popular, ser o Engenheiro Flávio de Carvalho, de 31 anos de idade, residente à praça Oswaldo Cruz, 1." ("Numa procissão. Uma experiência sobre a psicologia das multidões que resultou em sério distúrbio", O Estado de São Paulo, 9 de junho de 1931)

Vale lembrar que, à época, o gesto de descobrir a cabeça perante edifícios, objetos ou qualquer tipo de manifestação religiosa (católica), era uma demonstração de respeito. Portanto, não fazê-lo era considerado ato desrespeitoso e ofensivo. Em seu depoimento à polícia, porém, Carvalho afirma que não tinha intenção de ofender os fiéis e já esperava uma reação violenta. Seu objetivo era apenas testar a "capacidade agressiva de uma massa religiosa à resistência das forças das leis civis, ou determinar se a força da crença é maior do que a força da lei e do respeito à vida humana." (Idem) Percebe-se como o resultado da experiência mostrou ser a força da crença, nesse caso como em tantos outros, maior até que o respeito à vida humana.

Apoiado em conceitos que vão da psicanálise freudiana à antropologia do britânico Sir James Frazer, o autor procura avaliar o fenômeno religioso de uma perspectiva científica, encarando-o como uma resposta natural ao sentimento de insegurança do indivíduo.

Ironicamente dedicado "a S. Santidade o Papa Pio XI, a S. Eminência D. Duarte Leopoldo" - respectivamente, naquele ano, o Sumo Pontífice da Igreja Católica e o Arcebispo de São Paulo -, o livro Experiência nº 2 analisa ainda as diferentes reações particulares que Carvalho observou tanto na multidão quanto em si mesmo. Apoiado em conceitos que vão da psicanálise freudiana à antropologia do britânico Sir James Frazer, o autor procura avaliar o fenômeno religioso de uma perspectiva científica, encarando-o como uma resposta natural ao sentimento de insegurança do indivíduo. Desamparado frente à violência da natureza e da sociedade, o homem projetaria, em uma entidade superior e paternal, a bondade e a segurança que não encontra no mundo. A figura do Cristo, o filho flagelado, permitiria ainda a identificação de cada fiel com seu próprio sofrimento cotidiano, funcionando como símbolo unificador.

Se muitas das análises de Carvalho são hoje bastante questionáveis - embora permaneçam instigantes -, o livro vale sobretudo como importante documento de uma experiência que já foi considerada até mesmo como pioneira da "arte de ação" no Brasil. (Ver, por exemplo, CHIARELLI, Tadeu. "Flávio de Carvalho: questões sobre sua arte de ação" In: Flávio de Carvalho: 100 anos de um revolucionário romântico. Cur. Denise Mattar. Rio de Janeiro: CCBB, 1999, p. 53). Infelizmente, nenhum registro visual da Experiência nº 2 chegou até nós, diferente da conhecida Experiência nº 3, quando Flávio de Carvalho desfilou pelas ruas do centro de São Paulo vestindo blusa, saiote e meia-arrastão. Essas peças compunham seu "New Look", chamado ainda de "traje tropical" ou "traje de verão", fruto de pesquisas que dedicou à moda na década 1950, procurando conceber um tipo de roupa mais adequado ao clima de um país tropical. Dessa outra ação performática, realizada em 1956, restaram algumas fotografias, entre elas, esta que se encontra no Arquivo Bienal:


Quadro no Arquivo Bienal, com imagem da Experiência nº 3 de Flávio de Carvalho

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Thiago Gil é pesquisador da Fundação Bienal de São Paulo, Mestre em Teoria, Crítica e História da Arte pela ECA-USP