Ao prefaciar a sala especial do italiano Danilo di Prete (1911-1985) na 9ª Bienal de São Paulo, o escritor José Geraldo Vieira levantou duas possibilidades para o entendimento da obra do artista: “O caso Di Prete e a pintura de Di Prete”.1 O crítico fazia um balanço sobre os méritos do artista, que já havia conquistado duas vezes o primeiro lugar do prêmio de pintura nacional (1ª e 8ª edições) e, naquele ano, ganhava sua segunda sala especial (a primeira foi apresentada na 6ª edição). Não é demais lembrar que Di Prete também havia ganho o concurso internacional para o cartaz da 7ª Bienal de São Paulo e havia sido prêmio aquisição na 5ª edição.
Sobre sua pintura, Geraldo Vieira fala que a produção do artista vista na 9ª Bienal significava mais um “espetacular fenômeno Di Prete” 2 – quando o artista deixava o tradicional suporte da pintura e incorporava elementos como náilon, vidro, ferro e arame, visíveis por meio de luzes pendulares que revelavam o interior da obra quando em movimento. Tratava-se de uma mudança de percurso significativa se considerarmos que o artista vinha tendo, com a linguagem informalista, uma recepção bastante positiva entre os críticos de arte da época. Tal vertente já havia alcançado prestígio emblemático na 5ª Bienal com a figura de Manabu Mabe, o prêmio de pintura nacional e o suporte de Lourival Gomes Machado, crítico e diretor artístico da mostra.
Ao revisitar a fortuna crítica de Di Prete é possível perceber que o momento de apreciação unânime da sua produção não acontece exatamente no ano da 9ª Bienal, mas quando teve sua primeira sala especial, na 6ª Bienal. Esta celebração seria a primeira do artista após a “amarga” conquista, em suas palavras, do prêmio de pintura nacional na 1ª Bienal com a obra Limões.
A sala especial da 6ª edição lhe rendeu comentários positivos dos mais renomados críticos, como Mário Pedrosa3, Lourival Gomes Machado4 e Geraldo Ferraz5, além de Jean Cassou, parte do júri de premiação daquela edição – à época diretor do Museu Nacional de Arte Moderna de Paris – , que lhe enviou uma carta bastante elogiosa:
Geraldo Vieira publicou na Folha de São Paulo parte do texto que havia elaborado para a apresentação da sala especial no catálogo. Nele reflete sobre o desenvolvimento da pintura de Di Prete e seu histórico no Brasil6, tratando ainda da polêmica em torno da premiação dos Limões.
Fica evidente que esse evento passa a ser paradigmático para o estudo da trajetória do artista no Brasil. Assim como para considerar outra questão controversa: Di Prete declarou em vários momentos que foi quem deu a ideia a Francisco Matarazzo Sobrinho de realizar uma Bienal de São Paulo nos moldes da veneziana.
Retomando a premiação e fazendo uma brevíssima digressão: é fundamental lembrar que Di Prete havia chegado ao Brasil em 1946, estabelecendo residência em São Paulo, e que, apesar de ter participado de algumas mostras do Sindicato dos Artistas Plásticos, tirava seu sustento da propaganda. Quando seu nome foi indicado para o prêmio de pintura nacional na 1ª Bienal de São Paulo com Limões, formou-se celeuma em torno da questão. Questionou-se não apenas a solução plástica adotada pelo artista, mas também o fato de ele não ser brasileiro – pré-requisito para ser nomeado para o prêmio7. Em instância maior, discutiu-se como um ilustre desconhecido teve tanto êxito numa mostra como aquela.
Quando seu nome foi indicado para o prêmio de pintura nacional na 1ª Bienal de São Paulo com Limões, formou-se celeuma em torno da questão. Questionou-se não apenas a solução plástica adotada pelo artista, mas também o fato de ele não ser brasileiro – pré-requisito para ser nomeado para o prêmio. Em instância maior, discutiu-se como um ilustre desconhecido teve tanto êxito numa mostra como aquela.
De fato, a linguagem adotada em Limões estava em franco diálogo com uma tendência surgida na Itália de recuperação de certas correntes vanguardistas do início do século 20 – linguagem apresentada com fôlego nas últimas mostras das quais participou. O episódio da premiação ficaria, portanto, imediatamente associado ao seu nome, ainda que sua produção ligada ao tachismo tenha tido um êxito considerável.
No que concerne o depoimento sobre a ideia da Bienal de São Paulo, sua tentativa de recontar a história trazendo para si o mérito não alcançado ocorre por meio de quatro testemunhos: o primeiro fornecido em 1o. de setembro de 1976 – hoje em posse da família do artista, tendo o Arquivo Histórico Wanda Svevo uma cópia de sua transcrição; o segundo, em 1978, para Lisbeth Rebollo Gonçalves – no Arquivo Multimeios Centro Cultural São Paulo; o terceiro para Aracy Amaral, em 29 de janeiro de 1979 – no Arquivo da Biblioteca da Pinacoteca do Estado de São Paulo; e o quarto, em 9 de outubro de 1979, dado no ciclo de conferências do 30o aniversário do Museu de Arte Moderna (MAM-SP) – no Arquivo Multimeios Centro Cultural São Paulo. A partir dos depoimentos nota-se que, ainda que não tenham sido feitos no mesmo momento e tenham tido direcionamentos diferentes, são bastante homogêneos no que diz respeito às informações prestadas. Em linhas gerais, Di Prete conta como conheceu Ciccillo e o mobilizou a levar adiante sua ideia, a qual lhe havia ocorrido quando percebeu que no meio artístico de São Paulo não existiam mostras da magnitude e importância da Bienal de Veneza, com a qual havia tido contato. Como se sabe, as afirmações de Di Prete – que estão sendo investigadas pela autora – não foram confirmadas nem por Ciccillo ou por Yolanda Penteado, muito embora haja artistas que as confirmem e que muitos dos detalhes que tangenciam sua história condigam com a realidade. É fundamental deixar claro que estes testemunhos, de todo modo, tinham em si uma dupla função: a primeira, já apontada, de tentativa de dar a conhecer a sua “verdade dos fatos”; e a segunda, de deixar registrado em definitivo seu nome na História da Arte no Brasil; prática essa que certamente estava viva em sua memória, já que sua formação em ambiente italiano lhe possibilitou ampla convivência com escritos de artistas contemporâneos, os quais tinham feito este esforço autobiográfico com bastante êxito, como por exemplo, Carlo Carrà (em 1941), Giorgio de Chirico (em 1945) e Gino Severini (em 1946) para citar apenas alguns exemplos.
Sem perder essas questões de vista e longe de exaurir o assunto, é impossível não associar a imagem de Di Prete à história da Bienal de São Paulo. Trata-se de um artista que se constituiu e se firmou em território nacional justamente a partir de sua repetida inserção na mostra – treze participações –, com a conquista de prêmios, salas especiais, prêmios aquisição e ainda no contato íntimo – ainda que na maioria das vezes conflituoso – com críticos de arte importantes, os quais foram fundamentais na constituição e solidificação de uma crítica de arte brasileira. A figura de Di Prete, que muitas vezes é posta à margem nas narrativas oficiais, deve ser compreendida em sua complexidade: mais por meio de sua rede de relações do que em termos apartados – como propunha Geraldo Vieira – com os casos da “pintura” e do “artista”.
Notas
1. VIEIRA, José Geraldo. “Danilo di Prete”, in. CAT. EXP. IX Bienal de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1967.
2. Idem.
3. PEDROSA, Mário, apud CAT. EXP. Danilo di Prete. São Paulo: Selearte, 1962.
4. GOMES MACHADO, Lourival. “Bienal: juris & isenções”, in. O Estado de São Paulo, 11 novembro 1961. Clipping VI Bienal de São Paulo - Arquivo Wanda Svevo/ Fundação Bienal de São Paulo.
5. FERRAZ, Geraldo. “Balanço crítico da participação do Brasil na VI Bienal do MAM”, in. O Estado de São Paulo, 26 novembro 1961. Clipping VI Bienal de São Paulo - Arquivo Wanda Svevo/ Fundação Bienal de São Paulo.
6. VIEIRA, José Geraldo. “A Sala de Danilo di Prete na Bienal”, in. Folha de São Paulo, 13 dezembro 1961. Clipping VI Bienal de São Paulo - Arquivo Wanda Svevo/ Fundação Bienal de São Paulo.
7. Vale lembrar que no regulamento havia uma cláusula, a de número 5, que colocava em iguais condições para concorrer a tal prêmio tanto os artistas nacionais quanto os estrangeiros que residiam no país há mais dois de anos.
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Renata Dias Ferraretto Moura Rocco é doutoranda do Programa Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo sob orientação da Prof. Dra. Ana Gonçalves Magalhães. Apoio: Fapesp.