Em dezembro de 2014 foi lançado oficialmente no Brasil o livro German Art in São Paulo, de Sebastian Preuss e Ulrike Gross. Dois anos antes, ambos fizeram uma extensa pesquisa no Arquivo Bienal sobre a participação da Alemanha nas Bienais de São Paulo. Sobre a obra, Sebastian Preuss escreveu:
Em 1951, dois anos após a fundação da República Federal da Alemanha, a jovem democracia estava ansiosa por fazer conexões culturais internacionais e também para integrar-se com a comunidade global. Naquela época, muitos países tratavam os alemães com reserva, ou até mesmo recusavam a sua amizade por causa dos crimes nazistas.
Desde o começo, a Bienal de São Paulo foi de grande importância para o Ministério das Relações Exteriores da Alemanha, na cidade de Bonn, e grandes verbas foram alocadas para sua participação. Isto pode ser visto claramente nos arquivos do Ministério, e estava certamente conectado ao fato de que muitos alemães haviam emigrado para o Brasil desde 1824, especialmente para o sul do país, onde ainda hoje há uma forte presença alemã. Acima de tudo havia interesses econômicos tangíveis, que a arte deveria apoiar. Durante os anos 50, empreendimentos alemães foram rapidamente envolvidos no veloz crescimento da economia brasileira. A Volkswagen do Brasil foi fundada em 1953, seguida da Mercedes-Benz, assim como, com o passar dos anos, quase todas as grandes indústrias alemãs. Aproximadamente 1300 empreendimentos alemães têm suas subsidiárias na cidade de São Paulo hoje.
O departamento cultural do Ministério de Relações Exteriores era diretamente responsável pela representação alemã na Bienal de São Paulo. O Ministério geralmente seguia a recomendação de um comitê artístico independente para designar um comissário (como então eram chamados os curadores). A partir da 12ª Bienal, em 1973, o Instituto de Relações Exteriores (IFA) de Stuttgart passou a gerenciar a representação do país na Bienal, enquanto o Ministério continuou financiando todos os custos. Os funcionários do Ministério acompanhavam de perto todo o processo, exigindo relatórios dos comissários e do Consulado geral em São Paulo, meticulosamente verificando todos os gastos e reservando-se o direito de assinar os orçamentos. Até onde foi possível deduzir dos registros consultados, o Ministério não interferia nos conceitos dos comissários.
As primeiras participações nas Bienais celebravam a história da arte anterior à tomada de poder por Hitler, a reabilitação do movimento moderno – rotulado como degenerado pelos nazistas – assim como o cultivo da linguagem universal da abstração, vista como um vocabulário formal universal do mundo livre.
A peça central do nosso livro, no entanto, é a documentação detalhada de cada edição da Bienal desde a sua fundação, em 1951, até a 30ª edição, em 2012. Qual era o projeto de cada comissário alemão? Como essa seleção de obras de arte se relacionaria com o conceito de cada Bienal?
Qual foi o nosso processo? Além dos catálogos especiais que eram publicados pela Alemanha em quase todas as Bienais, a fonte mais rica foram os arquivos do Ministério das Relações Exteriores, em Berlim. Sobretudo, os relatórios enviados à Alemanha pelo Consulado Geral forneceram informações valiosas. O Arquivo Bienal foi outra fonte importante, onde encontramos inúmeras fotografias e artigos de jornal. Igualmente importante, senão mais abundante, foram as incontáveis conversas, ligações telefônicas e correspondências com os curadores, artistas e seus herdeiros.
As primeiras participações nas Bienais celebravam a história da arte anterior à tomada de poder por Hitler, a reabilitação do movimento moderno – rotulado como degenerado pelos nazistas – assim como o cultivo da linguagem universal da abstração, vista como um vocabulário formal universal do mundo livre. Na sequência de exposições especiais sobre a Bauhaus, expressionismo, Schwitters, Beckmann ou Klee – sempre em diálogo com os artistas contemporâneos mais jovens – os comissários alemães enfocavam o cenário da arte contemporânea desde a década de 1960. Muito poucos artistas participantes estão esquecidos hoje, alguns justificadamente e outros injustamente.
Durante os anos 1970 e 80, a primeira geração de artistas alemães ocidentais que se estabeleceu internacionalmente foi apresentada em São Paulo – Georg Baselitz, Blinky Palermo, Sigmar Polke, Markus Lüpertz, Anselm Kiefer ou Joseph Beuys. Eles apresentavam a cena artística de um país que estava lidando com a culpa do terceiro Reich de forma autocrítica e direta.
Anselm Kiefer impressionou em 1987 com sua grande pintura em múltiplas partes, míticas. Pesadas e abrangendo sete metros de diâmetro, elas podiam ser vistas de qualquer lugar do pavilhão de Niemeyer, de modo que a partir de então ninguém mais falou de nada além da “Bienal do Kiefer”.
Sigmar Polke também esteve artisticamente inspirado durante a sua estadia em São Paulo. Ele vincou e manipulou quimicamente as fotografias que havia tirado bêbado, beijando homens em um bar gay no centro da cidade, criando imagens fantasmagóricas e alienadas.
Desde 1977, o público brasileiro presenciou a participação de duas Alemanhas. A República Democrática Alemã – RDA – entrou na Bienal de São Paulo cinco anos antes de participar na Bienal de Veneza pela primeira vez. No entanto, Berlim Oriental não nomeava um comissário, pois os custos da viagem eram proibitivos. Em contraste com a República Federal, a RDA não considerava a sua representação em São Paulo como um projeto de prestígio. De qualquer forma, não era a arte-propaganda socialista que se enviava a São Paulo. A distante Bienal era uma daquelas áreas cinzentas na cultura RDA nas quais algumas coisas eram possíveis, desde que não se tornassem o centro das atenções do público. Curadores especializados selecionavam para São Paulo obras que retratavam uma visão de mundo cheia de ironia. Se pudessem ser lidas nas entrelinhas, havia uma grande quantidade de críticas sobre as condições do estado socialista nessas obras.
Desde a reunificação, especialmente após o ano 2000, a representação alemã nas Bienais tem cada vez mais espelhado a ascensão de Berlim como uma vital e peculiar capital da arte, cada vez mais carismática internacionalmente. Os comissários gerais da Bienal frequentemente convidam artistas de Berlim. Em 2006, na 27ª edição, a curadora Lisette Lagnado decidiu implementar uma orientação radicalmente nova para a mostra, abolindo o sistema de comissários internacionais, o que significou o fim de um período de 50 anos em que o Estado sancionou embaixadores culturais. Ainda assim o interesse de São Paulo pela arte alemã manteve-se forte.
Em 2010, os curadores Moacir dos Anjos e Agnaldo Farias convidaram um número de participantes alemães apenas já visto na década de 1950. Quatorze dos 161 artistas participantes tinham o seu domicílio em Berlim, ainda que apenas três deles possuíssem passaporte alemão. Esse é também um sinal da crescente globalização e entrelaçamento da cena artística.
Em 2012, ainda mais artistas com base na Alemanha foram convidados pelo curador Luis Pérez-Oramas. No entanto, a cena artística alemã não esteve fortemente representada na 31ª Bienal. Bienais não são arenas das nações. Houve uma razão para que São Paulo desse adeus ao conceito de representação nacional em 2006. Apenas Veneza se detêm a isso. Nossa revisão da história da segunda mais antiga mostra de arte global do mundo pode também dar uma indicação do que a Bienal poderia ser no futuro.
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Sebastian Preuss é historiador e crítico de arte. Desde 2012 é editor-chefe da revista de arte Weltkunst em Berlim.